Há muitos, muitos anos, vivia numa pequena aldeia um rapaz muito, muito feio a quem nenhuma rapariga queria para casamento. Reuniam-se no largo em alegres magotes nas serenas tardes luminosas dos vagarosos verões domingueiros cochichando e olhando cobiçosamente para o grupo de rapazes agrupados no outro lado daquele espaço. Espalhados em pequenos grupos encontravam-se os mais velhos conversando animadamente entre eles aparentemente alheios ao que se passava à sua volta, sentados com as abas dos chapéus escuros puxados para os olhos, enquanto as mulheres puxavam comodamente os lenços vistosos para as testas que cobriam os cabelos atados num rolo entrançado apertado na nuca. O céu recortado por fios esticados, de onde pendiam alegres e coloridos papéis elegantemente recortados, presos às casas que se agrupavam à volta do indiferente pelourinho esguio que desafiava heroicamente o enfurecido sol, que emprestava às faces um colorido inusual. Tudo parecia estar a postos para o desejado baile. Era neles que os rapazes e as moças casadoiros estreitavam ligações com os desejados pares.
Estava o largo neste efervescente entusiasmo, quando o rapaz feio apareceu calmamente no largo olhando em redor. Acercou-se ao grupo dos rapazes que trocavam conversas deitando ousadamente olhares para o grupo feminino. Foi alegremente cumprimentado e imediatamente esquecido pelo interesse que se direccionava para o outro lado do largo de onde se esgueiravam outros olhares discretos mas atentos esperando cruzarem-se com os dos eleitos ou estudando a direcção para descobrirem a fonte do seu interesse.
À semelhança dos seus pares, o rapaz feio estudou o quadro que se desenrolava à sua frente. Tudo correspondia ao esperado. E já estava determinado a desistir quando um ser esguio entrou no seu campo de visão. Era a rapariga dos seus sonhos. Ao contrário do esperado, não se reuniu às outras companheiras, mantendo-se teimosamente à margem, olhando na direcção do aglomerado masculino. Ficou intrigado. Que se passava? Há quanto tempo estaria ali? Teria acabado de chegar? Se assim fosse, estava explicado o afastamento. Era uma das mais belas raparigas que lhe fora dado o prazer de encontrar. Era tão bela quanto inatingível. Pelo menos para si! Via-a conversar com outros rapazes e raparigas da aldeia sem nunca parecer interessar-se por algum. Dir-se-ia esperar pelo seu príncipe encantado. Sempre a julgara destinada a grandes voos, os mesmos que a natureza lhe retirara. Todos os rapazes pareciam estar enamorados dela, mas nunca se atreviam a aproximar-se como se a sua formosura fosse uma vedação alta que mantinha afastados os pretendentes. Não havia na sua atitude, contudo, nenhuma vaidade capaz de justificar aquele efeito no sexo contrário. Nenhum parecia vê-la com os seus olhos. E era estranho! Nunca percebera a razão mas também nunca se dera ao trabalho de interrogar fosse quem fosse, com medo de desvendar o segredo que tinha tão zelosamente guardado em si. A sua atitude era invulgar. Deu por si a caminhar na sua direcção. Os colegas nem haviam escutado a desculpas pela sua ausência tal era o entusiasmo suscitado pela presença das raparigas que, ainda há relativamente pouco tempo, pareciam estar irremediavelmente separados. Ainda se lembrava de como se odiavam mutuamente! Nem importava se nos grupos haviam irmãos e irmãs. Nas brincadeiras não importavam os laços de sangue! Interessava o género. Eles intervinham nas suas brincadeiras ridicularizando-as e para as perturbar rindo-se aparentemente indiferentes aos protestos e aos furiosos empurrões desencadeados pelos seus atrevimentos. Muitas vezes, aos apelos das filhas acorriam as mães para ralharem com os desagradáveis moços! As tensões diminuíam nos dois grupos mas a desconfiança mantinha-se intacta enquanto eles mantivessem nas proximidades com receio de futuras investidas. Ao perceber desde sempre a diferença marcante entre si e os amigos, ele tentara sempre impor-se de forma diferente da dos colegas. Tornava-se no apaziguador e no conselheiro numa tentativa de impedir ou cortar as brincadeiras que incorriam no desagrado das meninas. Nem sempre lhe davam ouvidos. De tempos a tempos, vira-se no meio de contendas ácidas que ele se via aflito para solucionar, terminando estas quase invariavelmente com a presença de um adulto que fazia o papel de juiz nas desavenças dos miúdos. Aí, ele tornava-se o advogado de defesa ou acusação dos envolvidos superando, pela sua imparcialidade e inteligência os testemunhos parciais de ambos os grupos. Maria das Dores era a que mais se impunha aos rapazes que se mantinham afastados dela. Crescera em graça e beleza sendo admirada na sua aldeia e nas da vizinhança. Até o sangue nobre parecia atraído por tanta candura! E não era difícil ver jovens montados nos seus cavalos perdendo-se em grupo ou em solitário por aquelas bandas. Muitas vezes experimentara aproximar-se quase involuntariamente dela ou ficava observando de longe aquele interesse que se arrastava pelos campos quase em jeito de corte. Por último, tinha descoberto um fidalgo das redondezas que alargava os seus passeios diários por aqueles campos distantes, olhando demoradamente o corpo elegante que se movimentava dobrado à tarefa dos campos. Não lhe era difícil imaginar vê-lo a rondar de forma a descobrir os hábitos da rapariga. Parecia um lobo esfomeado! Como não pensara nisso antes? Dando atenção à reputação dele, todo o cuidado seria pouco! Apressou o passo à medida que este pensamento se insinuava na sua mente. Mais do que uma ideia era um pressentimento. Não percebia era como nunca mais ligara ao assunto! Como se fora esquecer dele daquela maneira? Mas tudo poderia não passar de imaginação sua! Só lhe restava uma solução – perceber o que acontecera. Forçou a memória. Não tinha ouvido falar de nada. Nem mesmo aos rapazes. Se tivesse acontecido algo, já se saberia. O mais certo era tudo não passar de imaginação sua! Poderia estar simplesmente enamorada e buscar um pouco de sossego. Mas não combinava com ela aquela atitude. Havia algo de errado! Ela era naturalmente alegre e espontânea.
Ao aproximar-se dela, afastou aqueles pensamentos que tanto o perturbavam. Parou junto do olhar ausente da moça. Não era fácil colocar-se junto dela, uma vez que se encontrava relativamente afastada do grupo mais próximo, onde lhe chegavam restos de conversas agarradas pelo vento. Sobressaltou-se ao sentir uma mão poisar cautelosamente no seu ombro. A sua atenção desviou-se do ponto invisível que a parecia absorver para se arrastar lentamente, como se acordasse de um sonho, para o indesejado perturbador. Os lábios alongaram-se num sorriso afectuoso ao reconhecerem o terno rosto feio que lhe avançava algumas frases. Abanou a cabeça de um lado para o outro da primeira vez que foi interpelada e afirmativamente da segunda. Começaram a afastar-se do largo para onde alguns passos apressados se dirigiam soltando um cumprimento passageiro. Gostava de conversar com aquele jovem que sempre fora tão respeitoso para com ela ultrapassando os galanteios, por vezes inconvenientes, de certos cavalheiros que se cruzavam com ela. Sobretudo os desconhecidos. Os da terra, dada a proximidade dos laços que unia a povoação, raramente se prestavam a esses jogos que, quando aconteciam, não passavam o patamar da brincadeira. Ela até lhes respondia com igual sentido de humor. De resto, a amizade que unia os jovens era forte. Afinal, haviam crescido lado a lado. Conheciam-se desde sempre e tinham irmãos mais novos ou mais velhos da mesma geração.
Os seus passos afastaram-se do largo. Ninguém parecia dar pela sua falta. À sua frente os raios solares começavam a desenhar uma curvatura cada vez mais baixa, que culminaria dali a algumas horas no seu desaparecimento por trás dos montes que rodeavam a pequena aldeia aninhada no vale profundo. Meteram-se pelos caminhos de terra ladeados por muros de pedra escura. A conversa desenvolvia-se naturalmente entre eles. Ele fazia uso do seu sentido de humor ao qual ela não resistia. Em vão. Nessa tarde, nada parecia exercer qualquer efeito sobre ela. Embora se mostrasse alegre e desprendida, o rapaz feio percebia que algo a preocupava. Mas o quê? Não era impressão sua. Conhecia-a bem de mais. Nunca se interessara tanto por uma rapariga como por ela pelo que a conhecia bem.
A determinada altura, fez notar que percebia na sua atitude que havia qualquer coisa que a perturbava. Ficou calado à espera de resposta. Como ela tardasse ou nem mesmo já a esperasse, estacou o passo e voltou-se para a encarar. Ela parara ainda antes dele. Ergueu-lhe docemente o rosto pegando-lhe com dois dedos no frágil queixo. Os seus olhos rasos de lágrimas ameaçavam explodir numa forte emoção a qualquer momento. Sentou-a num rochedo liso e enorme que se encontrava na bifurcação do caminho. Ajoelhou-se diante dela e esperou enquanto lhe estendia um lenço. Ela sorriu por entre as lágrimas que deslizavam agora dos imensos olhos pelas faces magras e aveludadas. Respeitou a emoção da amiga esperando que acalmasse para que ela pudesse finalmente começar a falar. A tristeza esvaziava os seus olhos e a sua alma. Foi então que começou a contar o que lhe acontecera havia duas semanas. O rapaz feio fechava o punho de indignação e revolta. Lentamente, a culpa foi-se insinuando no seu espírito. Era culpado do que acontecera à amiga que amava tão ternamente. Finalmente, ela terminou o discurso entrecortado pelos soluços quando passara à parte que mais a magoava. Também ela se sentia culpada pelo que havia acontecido. Como tinha sido tão parva? Como não desconfiara de nada? Ele não se aguentou mais. Contou-lhe que a culpa era só dele. Dera pela ronda mas nunca pensara que o atrevido fidalgo se atrevesse a tanto! Ele reparou que o tinha deixado de ver a partir de determinada altura. Pensara que tivesse encontrado outro motivo de cobiça longe da aldeia. Enganara-se rotundamente. O seu aparente desinteresse devia-se a ter levado a avante os seus maliciosos planos. Nem mesmo a imagem da bela cara do fidalgo toda arranhada o fazia sorrir. Gostaria de ter ouvido as desculpas que dera em casa. Os tojos devem ter aguentado com as culpas. O aparecimento súbito de um animal feroz, o susto do cavalo que se empina, e as plantas espinhosas mesmo ao lado. Abanou a cabeça desgostoso. Ela não queria falar aos pais ou aos irmãos. Tinha medo do que pudesse acontecer. Ele assentiu. Mas não poderia desistir de ser feliz. Ela olhou-o com uma careta que revelava toda a incredulidade que lhe enchia a alma. Ele fora arrebatado pelo sentimento que o dominava. Quem a queria? Ora, ele não se importaria nada de experimentar a vida ao seu lado! Olhou-o de soslaio. Era tonto! Arruinar a sua vida para ficar com ela e com o possível fruto daquela única mas consumada relação? Ele confirmou a sua ideia com a cabeça. Ele estava a falar a sério não estava? Olhou-o incrédula. Percebera tudo! Há quanto tempo tinha esse sentimento por ela? Desde que se lembrava! Não exactamente quando começara a gostar da amiga! Ela levou a mão à boca perdida em pensamentos. Ele estava disposto a tudo por ela! Abanou a cabeça. Não ia deixar que fizesse isso? Porquê? Ele era bom de mais?! Não somente a amava. Nada mais! Ela fitou-o finalmente e viu toda a ternura nos seus olhos. Se não gostava dele? Sempre achara que ele a achava uma tonta! Nunca pensou que alguma vez pudesse olhar para ela com outro sentimento que o da simples amizade! Como se enganar! Confessou-lhe então que sempre o apreciara e que ao tentar captar a sua atenção dera com o seu rosto fechado ou com uma simples resposta cheia de humor que a fazia rir mas que parecia afastá-la dele. Sorriram. Como tinham andado enganados aquele tempo todo! Fora preciso uma desgraça para que eles tivessem a liberdade e a frontalidade necessárias para falarem sem receios dos seus sentimentos.
- Sabes, às vezes a beleza pode ser um peso que acarretamos às costas a vida inteira! – volveu tristemente ela. –principalmente de pois de vermos certos homens a olhar para nós de uma certa maneira… - parou à procura da palavra certa – cobiça misturada com uma obsessão medonha!
- Pois… mas depende das pessoas com quem temos a sorte ou o azar de nos cruzarmos! – rematou ele. – Só isso!
Não valia a pena falar mais disso. O que lhe acontecera, poderia ter acontecido a qualquer outra rapariga. Aliás, a fama dele precedia-o! Ela não o conhecia! Não sabia quem ele era. Depois, a abordagem havia sido inofensiva. Os rapazes já o conheciam mas era só conversa entre eles. Nada mais. Não tinham visto necessidade em contar fosse a quem fosse. Parecia-lhes inofensivo. Agora, se ele voltasse, o que ele duvidava, perceberia ou fá-lo-iam perceber que ela tinha dono. Se isso queria dizer que nunca mais se separariam? Claro que sim. Mas dependeria do entorno… acrescentou com um largo sorriso.
Sorriram. Não havia nuvens no seu horizonte. O céu claro mostrava-lhes o caminho das suas vidas. Eles limitar-se-iam a segui-lo.
(A Harold Pinter)
Era uma vez uma Nação Grande. A Nação Grande pediu ajuda a outras nações para combater outras. Estas nações combatiam-na e às forças suas aliadas, mostrando o seu desagrado pelo seu envolvimento na sua política interna. Como todas as partes tinham os seus aliados, uns apoiando abertamente a Nação Grande e outros apoiando silenciosamente as outras, a guerra alastrou-se para várias frentes. E, num ápice, todo o mundo ficou em guerra. Mas a Nação Grande não se importou. Tinha mais armas do que o resto do mundo e as mais poderosas. E tinha os seus aliados também fortemente armados com as armas que lhes haviam vendido! Tudo estava controlado! As réplicas aos seus desmandos eram poucas e quase inconsequentes, pois as baixas nas suas tropas eram poucas ou nenhumas! Depois, como continuasse a ter na sua posse o fabrico das armas mais mortíferas, os seus líderes começaram a ficar mais gananciosos e começaram a olhar para os seus aliados como lobos esfomeados. “E se… - interrogavam-se. E mal ainda tinham pensado começaram logo a planear e a agir. Continuavam a ser os mais poderosos, pois tinham sob o seu controlo as piores armas, que o mesmo é dizer, as mais destruidoras, e lançaram-se confiantes ao novo empreendimento. Chegados a uma altura, os mortos eram tantos que os sobreviventes não tinham mãos para lhes darem um honroso túmulo, depois da breve cerimónia fúnebre. O medo imperava! Olhava-se por cima do ombro constantemente, com a certeza de que estavam a ser vigiados! E olhavam uns para os outros com desconfiança. Quais seriam os espiões infiltrados? Haviam decerto informadores entre eles! Tinham provas disso! Haviam-lhes chegado informações que só com esta explicação as teriam conseguido! O pânico de serem apanhados devorava-os constantemente e só a grande determinação e a devoção à causa o suplantavam!
Semeado o clima de terror, a Nação Grande sentou-se a descansar deixando os seus militares, a polícia secreta e as suas potentes armas de vigia. Não havia nação alguma que erguesse um exército capaz de vencer o seu! Teriam, pelo menos, de esperar várias gerações até conseguirem fazer-lhe frente em termos humanos; quanto às armas seria improvável que alguém, alguma vez, a igualasse. (Tinha ganho em todas as frentes!) Continuava a inventá-las, a fabricá-las e a arrumá-las em enormes armazéns, sempre prontas a serem experimentadas ou utilizadas sobre os insurrectos das nações submetidas pela força! E havia a arma certa para c Ada situação específica! Isto para já não falar das fábricas de seres humanos que alimentavam as fileiras dos seus intermináveis exércitos! Eram criados para a guerra e só conheciam essa realidade. Quando não estavam em guerra, vigiavam os povos das nações insurrectas e agiam conforme a lei que lhes havia sido inculcada – a força! Recorriam a todos os velhos e sempre actualizados métodos conhecidos (não conheciam a compaixão) aliados da violência para a qual tinham sido criados. Com o mundo assim controlado, a Nação Grande tornara-se uma nação cada vez mais forte e omnipresente. A sua vontade justificava os meios!
Dentro das suas eliminadas fronteiras, a população assistia impotente aos seus feitos realizados a uma velocidade estonteante, de forma distinta: enquanto uns rejubilavam com as suas vitórias sobre as outras nações (sem se importarem com os meios envolvidos), outros assistiam a tudo incrédulos! Começaram por se manifestar nas ruas insurgindo-se contra as invasões e os meios empregues, de toda a nação, não se revendo nas acções levadas a acabo pelos seus líderes! Nem queriam acreditar que todas as pessoas eleitas não faziam grande diferença entre si! Era como se vestissem uma imagem que em nada correspondia à sua forma de pensar! Ninguém compreendia o que estava a suceder! Também não compreenderam quando, nas mesmas ruas, a par das suas manifestações haviam outras contra-manifestações orquestradas por conterrâneos apoiantes da política dos dirigentes! O exército só tinha uma função: preservar a ordem! Assim, desceu a violência sobre uns e outros! Afinal, era a outra lei que, a par da violência, tinham aprendido! Os representantes da Nação Grande já não precisavam de apoiantes só de ordem! E os membros do exército, desligados de qualquer laço afectivo ou de parentesco, realizavam satisfatoriamente essa função!
As pessoas ficaram sujeitas à rotina que as obrigava a ficar em casa de onde saíam só para trabalhar! Nunca, até ali, haviam sofrido tamanha afronta! Que se passava? “Eram cidadãos de direito da Nação Grande!, pensavam indignados os que não concordavam com a política dos poderosos governantes. Os outros, os apoiantes da política expansiva da Nação Grande nunca haviam sido tratados daquela forma! Antes pelo contrário! Sentiram-se ultrajados e planeavam agora entre si formas de vingança contra aqueles que haviam apoiado antes. Serem tratados como os cidadãos das nações submetidas pela força?! Onde já se vira? Nunca nos anais da História da Nação Grande houvera registo de tal ultraje! Haveriam de esperar pelas próximas eleições… ou não?! Exigiam desculpas da parte daqueles que haviam eleito!
Estes riram-se com vontade! A ligação entre eles e o povo terminara logo após as eleições e nem percebiam isso! Nem desculpas nem eleições! Já não precisavam deles! A lei agora era igual para todos os cidadãos do mundo! Toda a população da Nação grande ficou estarrecida! Os seus apoiantes empalideceram de raiva. “Já não reconheciam os amigos? Que se fizesse uma coisa daquelas aos outros ainda se tolerava, mas a eles?!”, diziam indignados. Outros pensavam: “Como poderiam ter eleito pessoas como aquelas? Pareciam tão diferentes aquando das suas campanhas eleitorais! Teriam sido contaminados por uma estranha febre politica? Desde quando? Como? Porquê?”, diziam aturdidos.
Passada a surpresa inicial, e já de cabeça fria, começaram a engendrar meios para acabar com aquela injusta situação. Embora a palavra justiça não significasse o mesmo para ambas as partes – para os surpreendidos tinha um sentido mais abrangente para a os indignados apoiantes tinha um sentido mais restrito – resolveram que tinham de terminar com aquela situação! Foi então que perceberam que estavam ao nível das populações das outras Nações – não tinham meios que se pudessem equiparar aos dos líderes da Nação Grande. Alarmados, pensaram nas dificuldades atravessadas pelas populações das outras nações apelidadas de “terroristas” mas que mais não eram o que pessoas que se recusavam a aceitar aquela situação de submissão e que lutavam pela reposição de uma ordem diferente. Muitos já tinham morrido em confronto, outros haviam sido capturados pelos braços intermináveis e omnipresentes do exército da Nação Grande para serem interrogados e torturados de forma a convencê-los a falar, que o mesmo é dizer a denunciar todos aqueles que faziam parte da alegada organização terrorista! Embora as nações se ajudassem pouco ou nada conseguiam contra o todo poderoso exército da Nação Grande. As outras nações não passavam de meras explorações onde trabalhavam os povos revertendo grande parte do que produziam para alimentar esse pesado exército e as necessidades da Nação Grande para quem tudo era pouco no sentido de se manter na supremacia. Esta reinava o mundo sob o peso do terror a que submetia todos os povos das outras nações em nome de grandes ideais como terminar com a construção de armas de forte destruição e a protecção do seu espaço. Basicamente a ideia resumia-se a uma frase – atacar para se defender! Só que estes ideais eram usados indiscriminadamente contra todos os habitantes das nações de todo o mundo! Cada nação perecera sob o peso desses grandes ideais! E assim governava o mundo! Todos se lembravam dos falsos pretextos que os levava a intervir militarmente ou de outra forma nas diferentes nações e que agora se viravam contra a sua própria população. E não era fácil inverter a situação! Seria, pensando friamente, se não impossível quase impossível. Mas havia uma arma com a qual não contava a Nação Grande – a inteligência humana! Utilizariam esta arma contra a força brutal do aparelho governamental! Não era isso que faziam os povos das outras nações?! Sem grande sucesso, era verdade, mas não desistiam!
“Como resolver uma situação destas sem recorrer à violência?”, interrogavam-se os surpreendidos, mais sensatos, que punham um travão aos indignados apoiantes que manifestavam enraivecidamente a sua indignação. “Afinal, eram compatriotas seus e também teriam uma razão para utilizarem quando chamados a ela!”, continuavam eles.
Os ultrajados opuseram-se. Não acreditavam nos bons sentimentos! Não haviam os dirigentes estatais traído os seus apoiantes? Não falava essa atitude por eles? Que mais provas queriam os surpreendidos da sua má vontade?
“Sim, talvez”, concordaram os sensatos “mas haveria que tentar! Poupar-se-iam muitas mortes de parte a parte! Os ultrajados indignaram-se mais uma vez. Porque haveriam de ter compaixão por uns fulanos que haviam sido fabricados e que nem compaixão sentiam por nada nem ninguém? Afinal, não tinham laços de parentesco! Haviam sido criados por laboratórios científicos e criados pelo aparelho dos governantes da Nação Grande! Era contra eles que se bateriam! Eram autênticas armas aliadas as terríveis bombas destruidoras das massas humanas. Para as populações atingidas pelas terríveis armas eram precisas três gerações (ou mais!) para modificarem os efeitos naqueles que, havendo sobrevivido a elas, não tinham ficado imunes aos seus efeitos! Aqueles seres que compunham os exércitos nada tinham de humano a não ser a aparência, era claro!
A outra metade resolveu tentar, ainda assim, a conversação aberta e presencial com os dirigentes. Elegeram então um representante, ambos membros das duas diferentes facções da população da Nação Grande. Um, que era reconhecido como apoiante governamental, outro pela sua capacidade de persuasão e sensatez. Apresentaram o seu pedido e lá conseguiram que agendassem um dia e uma hora para o diálogo entre os dois lados: governantes e cidadãos. Não havia sido fácil. O primeiro argumento utilizado contra essa entrevista fora a existência de representantes eleitos por esses círculos regionais para falarem com eles e estes é que deveriam dirigir-se aos governantes manifestando-lhes as suas ideias. Aqueles haviam cedido só à possibilidade de poderem estar perante outros caminhos em que não haviam pensado. A curiosidade aliada à ganância de poderem estar na posse de um segredo com que não haviam contado, vencera.
Chegado o dia, os governantes viram-se perante duas pessoas banais (nem sequer estavam bem vestidos!) que lhes falavam de uma outra ordem. Esta era totalmente diferente daquela em que viviam e na qual já haviam vivido muitas nações grandes e pequenas e que agora lhes calhava a eles experimentar. Falavam de liberdade de escolha, de responsabilidade, de transparência, de pluralidade… onde todos sabiam exactamente o que fazer sem a presença de polícias ou de exércitos.
Os dirigentes riram-se e arranjaram mil e um argumentos para arrasarem os da “oposição”. Não havia lugar para pessoas que não pensavam como eles! O mundo lá fora não era nem nunca seria como pretendiam. Era precisa a ordem para evitar o caos! Era nisso que tinham experiência! Era isso que estavam a fazer! Deveriam estar agradecidos! Os argumentos iam e vinham sem que ninguém se ouvisse ou tentasse compreender. E para mudar era necessário entender!
Acabado o diálogo, ambas as partes se separaram descontentes. Os governantes perceberam que tinham opositores e os outros que era impossível a modificação através do diálogo. Os representantes reuniram-se com os restantes opositores para decidirem o que haveriam de fazer. “Matar os governantes?”, sugeriram os representantes dos cidadãos ultrajados. Não seria difícil encontrar alguém no meio de tantos descontentes!
“Viriam mais” opuseram os sensatos. “a escola era infinita e começava cedo nos movimentos pró-governamentais e levariam gerações a apagar-se, se é que alguma vez se apagaria. Afinal, o que se inculca em criança dificilmente desaparece mais tarde sendo sempre transmitida fielmente à geração seguinte! A não ser que a criança fosse excepcionalmente inteligente e madura para a idade para perceber o que estava certo e errado! Mesmo que a aprendizagem fosse transmitida de uma forma agradável e convicta!”, opunham os sensatos.
Os governantes, que não gostavam de oposições, viessem elas de onde viessem, resolveram colocar os dois suspeitos sob constante vigilância! Como estes começassem a espalhar “propaganda” contra o regime, sofreram inexplicáveis acidentes que limpavam qualquer possibilidade de ligação aos governantes mantendo-se dessa forma intacta a imagem dos governantes da Nação Grande. Esfregaram as mãos de contentes! Problema solucionado! Trabalho limpinho! Como atrás destes viessem outros com o mesmo objectivo, e como já ninguém acreditava nos alegados acidentes, o caso começou a tornar-se publicamente complicado! Às negociações falhadas seguiram-se as temíveis rebeliões. Notícias avançavam a hipótese de haver insurreições que alastravam às grandes províncias da Nação Grande! E estavam a ganhar adeptos!
“Perigoso! Deveras perigoso!” pensavam os senhores do poder. Enviaram os implacáveis exércitos sobre eles! A estes ninguém influenciava! Geneticamente manipulados eram dotados de uma inteligência dita superior para se deixarem influenciar por alguém! Tarde de mais também para se doutrinarem nos novos ideais! Estavam descansados! Surgiram entretanto notícias de deserções em vários exércitos que haviam aumentado significativamente o número de opositores! Outras informações diziam que muitos armazéns haviam sido assaltados e as suas armas poderosas desmanteladas! O pânico subiu nas hierarquias governamentais. Não compreendiam! Não podia ser! Um ser humano normal não teria capacidade para o fazer! Esse acto só poderia ser atribuído aos desertores do poderoso exército e da polícia secreta! Como iriam lutar contra aqueles seres que nem percebiam bem o que eram (pois nunca lhes haviam prestado qualquer atenção até ali) mas de cuja inteligência desconfiavam agora? Voltavam-se as suas armas contra eles! Se tinham compreendido as novas ideias e aderido a elas, como poderiam ter sido tratados apenas como mera mão-de-obra bélica até ali? Onde é que a ciência tinha falhado? Queriam ouvir os cientistas para tentarem perceber contra quem estavam a lutar (mais o quê) para os seus oficiais poderem escolher os meios mais eficazes. Ficaram alarmados com as suas respostas! Não sabiam como controlar “algo” que fora criado por eles?! Era como inventar um veneno sem pensar imediatamente no antídoto!
A polícia secreta fez-se anunciar mais uma vez.
“Mais novidades?”, berraram os governantes desorientados, “Esperemos que sejam boas desta vez!”
Ficaram petrificados e boquiabertos. Estavam a perder terreno! E nem baixas haviam a registar nas fileiras da oposição! Como conseguiam eles tudo aquilo sem derramamento de sangue? Olharam para os cientistas que encolheram os ombros! A mente era algo que ainda não se compreendia totalmente! Havia ainda muito por descobrir! Esta resposta enfureceu os governantes. Só isso? Era lógico que não sabiam e agora estavam a pagar cara a sua ignorância! Não sabiam que na ciência não se podia deixar nada ao acaso? Não tinham como exemplo os colegas responsáveis pela criação das terríveis bombas destrutivas que todos temiam? Resultavam na perfeição!
“Sim”, respondeu um, “mas estão a ser desmanteladas pelo inimigo!”
“Sim, imbecis, as vossas aberrações arranjaram maneira de o fazer! E não sabemos quais as suas capacidades e conhecimentos! ”
“É porque havia uma maneira…”, insistiu o cientista, “os senhores e os outros dos antigos governos não queriam uma espécie superior à raça humana, uma espécie de raça humana aperfeiçoada? Ela aí está! Conseguimos!”
“Sim queríamo-la, mas para nos servir não para nos governarem ou se oporem a nós! E deveriam ser fiéis à nossa ideologia e incorruptíveis a qualquer outra!”
Cruzavam-se impacientes na carpete da grande sala diante dos nervosos cientistas coordenadores do projecto que mais pareciam miúdos de escola apanhados em flagrante.
“Agora o que fazemos?”, interrogou um.
“Não há nada a fazer. Eles não obedecem a padrão algum. Foram feitos à nossa imagem, logo são tão imprevisíveis quanto nós. Ou melhor, havia um padrão que nós lhes inculcámos mas, conseguiram, de alguma forma, ultrapassá-lo!”
“E agora o que podemos fazer?”, insistiu um dos governantes.
“Cabe ao exército as respostas não a nós. Somos meros cientistas”, ripostou o interpelado.
“E incompetentes também!”, vociferou um dos governantes.
Pouco a pouco, a Nação Grande foi tomada pela nova e temida ordem, ou melhor, ideologia que se estendeu depois ao resto do mundo que conheceu, finalmente, a liberdade. Liberdade baseada no respeito e na responsabilidade que levava cada um a uma consciência de si e do próximo, liberta de polícias, de exércitos e de assassínios!
Os governantes nada puderam fazer a não ser renderem-se. Uma nova ordem nasceu e com ela a felicidade humana! Sempre havia uma alternativa… bastava querer!
Fátima Nascimento
30/03/2010
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