Domingo, 4 de Abril de 2010

A Nova Ordem

(A Harold Pinter)

 

Era uma vez uma Nação Grande. A Nação Grande pediu ajuda a outras nações para combater outras. Estas nações combatiam-na e às forças suas aliadas, mostrando o seu desagrado pelo seu envolvimento na sua política interna. Como todas as partes tinham os seus aliados, uns apoiando abertamente a Nação Grande e outros apoiando silenciosamente as outras, a guerra alastrou-se para várias frentes. E, num ápice, todo o mundo ficou em guerra. Mas a Nação Grande não se importou. Tinha mais armas do que o resto do mundo e as mais poderosas. E tinha os seus aliados também fortemente armados com as armas que lhes haviam vendido! Tudo estava controlado! As réplicas aos seus desmandos eram poucas e quase inconsequentes, pois as baixas nas suas tropas eram poucas ou nenhumas! Depois, como continuasse a ter na sua posse o fabrico das armas mais mortíferas, os seus líderes começaram a ficar mais gananciosos e começaram a olhar para os seus aliados como lobos esfomeados. “E se… - interrogavam-se. E mal ainda tinham pensado começaram logo a planear e a agir. Continuavam a ser os mais poderosos, pois tinham sob o seu controlo as piores armas, que o mesmo é dizer, as mais destruidoras, e lançaram-se confiantes ao novo empreendimento. Chegados a uma altura, os mortos eram tantos que os sobreviventes não tinham mãos para lhes darem um honroso túmulo, depois da breve cerimónia fúnebre. O medo imperava! Olhava-se por cima do ombro constantemente, com a certeza de que estavam a ser vigiados! E olhavam uns para os outros com desconfiança. Quais seriam os espiões infiltrados? Haviam decerto informadores entre eles! Tinham provas disso! Haviam-lhes chegado informações que só com esta explicação as teriam conseguido! O pânico de serem apanhados devorava-os constantemente e só a grande determinação e a devoção à causa o suplantavam!

Semeado o clima de terror, a Nação Grande sentou-se a descansar deixando os seus militares, a polícia secreta e as suas potentes armas de vigia. Não havia nação alguma que erguesse um exército capaz de vencer o seu! Teriam, pelo menos, de esperar várias gerações até conseguirem fazer-lhe frente em termos humanos; quanto às armas seria improvável que alguém, alguma vez, a igualasse. (Tinha ganho em todas as frentes!) Continuava a inventá-las, a fabricá-las e a arrumá-las em enormes armazéns, sempre prontas a serem experimentadas ou utilizadas sobre os insurrectos das nações submetidas pela força! E havia a arma certa para c Ada situação específica! Isto para já não falar das fábricas de seres humanos que alimentavam as fileiras dos seus intermináveis exércitos! Eram criados para a guerra e só conheciam essa realidade. Quando não estavam em guerra, vigiavam os povos das nações insurrectas e agiam conforme a lei que lhes havia sido inculcada – a força! Recorriam a todos os velhos e sempre actualizados métodos conhecidos (não conheciam a compaixão) aliados da violência para a qual tinham sido criados. Com o mundo assim controlado, a Nação Grande tornara-se uma nação cada vez mais forte e omnipresente. A sua vontade justificava os meios!

Dentro das suas eliminadas fronteiras, a população assistia impotente aos seus feitos realizados a uma velocidade estonteante, de forma distinta: enquanto uns rejubilavam com as suas vitórias sobre as outras nações (sem se importarem com os meios envolvidos), outros assistiam a tudo incrédulos! Começaram por se manifestar nas ruas insurgindo-se contra as invasões e os meios empregues, de toda a nação, não se revendo nas acções levadas a acabo pelos seus líderes! Nem queriam acreditar que todas as pessoas eleitas não faziam grande diferença entre si! Era como se vestissem uma imagem que em nada correspondia à sua forma de pensar! Ninguém compreendia o que estava a suceder! Também não compreenderam quando, nas mesmas ruas, a par das suas manifestações haviam outras contra-manifestações orquestradas por conterrâneos apoiantes da política dos dirigentes! O exército só tinha uma função: preservar a ordem! Assim, desceu a violência sobre uns e outros! Afinal, era a outra lei que, a par da violência, tinham aprendido! Os representantes da Nação Grande já não precisavam de apoiantes só de ordem! E os membros do exército, desligados de qualquer laço afectivo ou de parentesco, realizavam satisfatoriamente essa função!

As pessoas ficaram sujeitas  à rotina que as obrigava a ficar em casa de onde saíam só para trabalhar! Nunca, até ali, haviam sofrido tamanha afronta! Que se passava? “Eram cidadãos de direito da Nação Grande!, pensavam indignados os que não concordavam com a política dos poderosos governantes. Os outros, os apoiantes da política expansiva da Nação Grande nunca haviam sido tratados daquela forma! Antes pelo contrário! Sentiram-se ultrajados e planeavam agora entre si formas de vingança contra aqueles que haviam apoiado antes. Serem tratados como os cidadãos das nações submetidas pela força?! Onde já se vira? Nunca nos anais da História da Nação Grande houvera registo de tal ultraje! Haveriam de esperar pelas próximas eleições… ou não?! Exigiam desculpas da parte daqueles que haviam eleito!

Estes riram-se com vontade! A ligação entre eles e o povo terminara logo após as eleições e nem percebiam isso! Nem desculpas nem eleições! Já não precisavam deles! A lei agora era igual para todos os cidadãos do mundo! Toda a população da Nação grande ficou estarrecida! Os seus apoiantes empalideceram de raiva. “Já não reconheciam os amigos? Que se fizesse uma coisa daquelas aos outros ainda se tolerava, mas a eles?!”, diziam indignados. Outros pensavam: “Como poderiam ter eleito pessoas como aquelas? Pareciam tão diferentes aquando das suas campanhas eleitorais! Teriam sido contaminados por uma estranha febre politica? Desde quando? Como? Porquê?”, diziam aturdidos.

Passada a surpresa inicial, e já de cabeça fria, começaram a engendrar meios para acabar com aquela injusta situação. Embora a palavra justiça não significasse o mesmo para ambas as partes – para os surpreendidos tinha um sentido mais abrangente para a os indignados apoiantes tinha um sentido mais restrito – resolveram que tinham de terminar com aquela situação! Foi então que perceberam que estavam ao nível das populações das outras Nações – não tinham meios que se pudessem equiparar aos dos líderes da Nação Grande. Alarmados, pensaram nas dificuldades atravessadas pelas populações das outras nações apelidadas de “terroristas” mas que mais não eram o que pessoas que se recusavam a aceitar aquela situação de submissão e que lutavam pela reposição de uma ordem diferente. Muitos já tinham morrido em confronto, outros haviam sido capturados pelos braços intermináveis e omnipresentes do exército da Nação Grande para serem interrogados e torturados de forma a convencê-los a falar, que o mesmo é dizer a denunciar todos aqueles que faziam parte da alegada organização terrorista! Embora as nações se ajudassem pouco ou nada conseguiam contra o todo poderoso exército da Nação Grande. As outras nações não passavam de meras explorações onde trabalhavam os povos revertendo grande parte do que produziam para alimentar esse pesado exército e as necessidades da Nação Grande para quem tudo era pouco no sentido de se manter na supremacia. Esta reinava o mundo sob o peso do terror a que submetia todos os povos das outras nações em nome de grandes ideais como terminar com a construção de armas de forte destruição e a protecção do seu espaço. Basicamente a ideia resumia-se a uma frase – atacar para se defender! Só que estes ideais eram usados indiscriminadamente contra todos os habitantes das nações de todo o mundo! Cada nação perecera sob o peso desses grandes ideais! E assim governava o mundo! Todos se lembravam dos falsos pretextos que os levava a intervir militarmente ou de outra forma nas diferentes nações e que agora se viravam contra a sua própria população. E não era fácil inverter a situação! Seria, pensando friamente, se não impossível quase impossível. Mas havia uma arma com a qual não contava a Nação Grande – a inteligência humana! Utilizariam esta arma contra a força brutal do aparelho governamental! Não era isso que faziam os povos das outras nações?! Sem grande sucesso, era verdade, mas não desistiam!

“Como resolver uma situação destas sem recorrer à violência?”, interrogavam-se os surpreendidos, mais sensatos, que punham um travão aos indignados apoiantes que manifestavam enraivecidamente a sua indignação. “Afinal, eram compatriotas seus e também teriam uma razão para utilizarem quando chamados a ela!”, continuavam eles.

Os ultrajados opuseram-se. Não acreditavam nos bons sentimentos! Não haviam os dirigentes estatais traído os seus apoiantes? Não falava essa atitude por eles? Que mais provas queriam os surpreendidos da sua má vontade?

“Sim, talvez”, concordaram os sensatos “mas haveria que tentar! Poupar-se-iam muitas mortes de parte a parte! Os ultrajados indignaram-se mais uma vez. Porque haveriam de ter compaixão por uns fulanos que haviam sido fabricados e que nem compaixão sentiam por nada nem ninguém? Afinal, não tinham laços de parentesco! Haviam sido criados por laboratórios científicos e criados pelo aparelho dos governantes da Nação Grande! Era contra eles que se bateriam! Eram autênticas armas aliadas as terríveis bombas destruidoras das massas humanas. Para as populações atingidas pelas terríveis armas eram precisas três gerações (ou mais!) para modificarem os efeitos naqueles que, havendo sobrevivido a elas, não tinham ficado imunes aos seus efeitos! Aqueles seres que compunham os exércitos nada tinham de humano a não ser a aparência, era claro!

A outra metade resolveu tentar, ainda assim, a conversação aberta e presencial com os dirigentes. Elegeram então um representante, ambos membros das duas diferentes facções da população da Nação Grande. Um, que era reconhecido como apoiante governamental, outro pela sua capacidade de persuasão e sensatez. Apresentaram o seu pedido e lá conseguiram que agendassem um dia e uma hora para o diálogo entre os dois lados: governantes e cidadãos. Não havia sido fácil. O primeiro argumento utilizado contra essa entrevista fora a existência de representantes eleitos por esses círculos regionais para falarem com eles e estes é que deveriam dirigir-se aos governantes manifestando-lhes as suas ideias. Aqueles haviam cedido só à possibilidade de poderem estar perante outros caminhos em que não haviam pensado. A curiosidade aliada à ganância de poderem estar na posse de um segredo com que não haviam contado, vencera.

Chegado o dia, os governantes viram-se perante duas pessoas banais (nem sequer estavam bem vestidos!) que lhes falavam de uma outra ordem. Esta era totalmente diferente daquela em que viviam e na qual já haviam vivido muitas nações grandes e pequenas e que agora lhes calhava a eles experimentar. Falavam de liberdade de escolha, de responsabilidade, de transparência, de pluralidade… onde todos sabiam exactamente o que fazer sem a presença de polícias ou de exércitos.

Os dirigentes riram-se e arranjaram mil e um argumentos para arrasarem os da “oposição”. Não havia lugar para pessoas que não pensavam como eles! O mundo lá fora não era nem nunca seria como pretendiam. Era precisa a ordem para evitar o caos! Era nisso que tinham experiência! Era isso que estavam a fazer! Deveriam estar agradecidos! Os argumentos iam e vinham sem que ninguém se ouvisse ou tentasse compreender. E para mudar era necessário entender!

Acabado o diálogo, ambas as partes se separaram descontentes. Os governantes perceberam que tinham opositores e os outros que era impossível a modificação através do diálogo. Os representantes reuniram-se com os restantes opositores para decidirem o que haveriam de fazer. “Matar os governantes?”, sugeriram os representantes dos cidadãos ultrajados. Não seria difícil encontrar alguém no meio de tantos descontentes!

“Viriam mais” opuseram os sensatos. “a escola era infinita e começava cedo nos movimentos pró-governamentais e levariam gerações a apagar-se, se é que alguma vez se apagaria. Afinal, o que se inculca em criança dificilmente desaparece mais tarde sendo sempre transmitida fielmente à geração seguinte! A não ser que a criança fosse excepcionalmente inteligente e madura para a idade para perceber o que estava certo e errado! Mesmo que a aprendizagem fosse transmitida de uma forma agradável e convicta!”, opunham os sensatos.

Os governantes, que não gostavam de oposições, viessem elas de onde viessem, resolveram colocar os dois suspeitos sob constante vigilância! Como estes começassem a espalhar “propaganda” contra o regime, sofreram inexplicáveis acidentes que limpavam qualquer possibilidade de ligação aos governantes mantendo-se dessa forma intacta a imagem dos governantes da Nação Grande. Esfregaram as mãos de contentes! Problema solucionado! Trabalho limpinho! Como atrás destes viessem outros com o mesmo objectivo, e como já ninguém acreditava nos alegados acidentes, o caso começou a tornar-se publicamente complicado! Às negociações falhadas seguiram-se as temíveis rebeliões. Notícias avançavam a hipótese de haver insurreições que alastravam às grandes províncias da Nação Grande! E estavam a ganhar adeptos!

“Perigoso! Deveras perigoso!” pensavam os senhores do poder. Enviaram os implacáveis exércitos sobre eles! A estes ninguém influenciava! Geneticamente manipulados eram dotados de uma inteligência dita superior para se deixarem influenciar por alguém! Tarde de mais também para se doutrinarem nos novos ideais! Estavam descansados! Surgiram entretanto notícias de deserções em vários exércitos que haviam aumentado significativamente o número de opositores! Outras informações diziam que muitos armazéns haviam sido assaltados e as suas armas poderosas desmanteladas! O pânico subiu nas hierarquias governamentais. Não compreendiam! Não podia ser! Um ser humano normal não teria capacidade para o fazer! Esse acto só poderia ser atribuído aos desertores do poderoso exército e da polícia secreta! Como iriam lutar contra aqueles seres que nem percebiam bem o que eram (pois nunca lhes haviam prestado qualquer atenção até ali) mas de cuja inteligência desconfiavam agora? Voltavam-se as suas armas contra eles! Se tinham compreendido as novas ideias e aderido a elas, como poderiam ter sido tratados apenas como mera mão-de-obra bélica até ali? Onde é que a ciência tinha falhado? Queriam ouvir os cientistas para tentarem perceber contra quem estavam a lutar (mais o quê) para os seus oficiais poderem escolher os meios mais eficazes. Ficaram alarmados com as suas respostas! Não sabiam como controlar “algo” que fora criado por eles?! Era como inventar um veneno sem pensar imediatamente no antídoto!

A polícia secreta fez-se anunciar mais uma vez.

“Mais novidades?”, berraram os governantes desorientados, “Esperemos que sejam boas desta vez!”

Ficaram petrificados e boquiabertos. Estavam a perder terreno! E nem baixas haviam a registar nas fileiras da oposição! Como conseguiam eles tudo aquilo sem derramamento de sangue? Olharam para os cientistas que encolheram os ombros! A mente era algo que ainda não se compreendia totalmente! Havia ainda muito por descobrir! Esta resposta enfureceu os governantes. Só isso? Era lógico que não sabiam e agora estavam a pagar cara a sua ignorância! Não sabiam que na ciência não se podia deixar nada ao acaso? Não tinham como exemplo os colegas responsáveis pela criação das terríveis bombas destrutivas que todos temiam? Resultavam na perfeição!

“Sim”, respondeu um, “mas estão a ser desmanteladas pelo inimigo!”

“Sim, imbecis, as vossas aberrações arranjaram maneira de o fazer! E não sabemos quais as suas capacidades e conhecimentos! ”

“É porque havia uma maneira…”, insistiu o cientista, “os senhores e os outros dos antigos governos não queriam uma espécie superior à raça humana, uma espécie de raça humana aperfeiçoada? Ela aí está! Conseguimos!”

“Sim queríamo-la, mas para nos servir não para nos governarem ou se oporem a nós! E deveriam ser fiéis à nossa ideologia e incorruptíveis a qualquer outra!”

Cruzavam-se impacientes na carpete da grande sala diante dos nervosos cientistas coordenadores do projecto que mais pareciam miúdos de escola apanhados em flagrante.

“Agora o que fazemos?”, interrogou um.

“Não há nada a fazer. Eles não obedecem a padrão algum. Foram feitos à nossa imagem, logo são tão imprevisíveis quanto nós. Ou melhor, havia um padrão que nós lhes inculcámos mas, conseguiram, de alguma forma, ultrapassá-lo!”

“E agora o que podemos fazer?”, insistiu um dos governantes.

“Cabe ao exército as respostas não a nós. Somos meros cientistas”, ripostou o interpelado.

“E incompetentes também!”, vociferou um dos governantes.

Pouco a pouco, a Nação Grande foi tomada pela nova e temida ordem, ou melhor, ideologia que se estendeu depois ao resto do mundo que conheceu, finalmente, a liberdade. Liberdade baseada no respeito e na responsabilidade que levava cada um a uma consciência de si e do próximo, liberta de polícias, de exércitos e de assassínios!

Os governantes nada puderam fazer a não ser renderem-se. Uma nova ordem nasceu e com ela a felicidade humana! Sempre havia uma alternativa… bastava querer!

 

 

Fátima Nascimento

30/03/2010

 

publicado por fatimanascimento às 20:58
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