Domingo, 18 de Abril de 2010

Inês e o Pequeno-almoço

Inês levantou-se cedo. Fim-de-semana. Saltou da cama, calçou as pantufas e vestiu o robe ainda ensonada. Olhou para o rádio-despertador. Marcava sete horas! Acordou a voz dirigindo-se à cara ensonada da mãe e murmurando:

- Vou fazer-te o pequeno-almoço!

Desceu as escadas em silêncio. À sua volta a casa ainda dormitava sob a luz fraca e crua da madrugada. O dia desenhava-se chuvoso e cinzento igual aos da semana que findara. Da cozinha chegavam os ruídos das loiças e dos talheres que se mexiam uns contra os outros sob a autoridade da pequena mão.

A mãe não tinha muita fome. Como estava praticamente reduzida ao espaço da cama, de onde pouco se mexia, o apetite era nulo. Mas como a oferta tinha sido tão sincera e tão simpática e partia de uma pequenina de apenas sete anos, a mãe não teve coragem de a desencorajar. Sentou-se cautelosamente na cama e procurou as caixas dos comprimidos que estavam empilhadas do lado oposto ao da cama. Tinha de tomar três espaçadamente assim que acordava. O primeiro, um protector gástrico, outro para a alergia e outro para combater as dores que a imobilizavam mas que não resolviam o seu problema de saúde. Sentia-se desanimada, Mas procurava guardar esse desânimo para si para poupar as pessoas que viviam com ela. Sobretudo evitava assustar a pequenita. Era engraçado vê-la, à noite, no papel de mãe em ponto pequeno aconchegando os edredões e o lençol ao rosto sorridente da mãe ao mesmo tempo que lhe dava beijinhos alternadamente na face e na ponta do nariz!

Voltou a deitar-se com cuidado esperando o regresso da pequena aventureira que se afadigava na cozinha dividindo-se entre o microondas e a torradeira. A mãe seguia atentamente cada ruído para ter a certeza de que tudo corria bem e ela não se magoava. Seguiu-se um silêncio só quebrado pela voz da pequena que enumerava mentalmente todos os objectos necessários de forma a não se esquecer de nada!

Daí a pouco, viu-a subir atentamente as escadas evitando algum possível acidente. Olhava para o tabuleiro onde se equilibravam precariamente uma chávena e um prato ao mesmo tempo que tentava recordar-se dos degraus da escada onde colocava ora um pé ora outro. Finda a difícil e vagarosa subida entrou entusiasmada no quarto dizendo na sua clara voz:

- As torradas queimaram-se um bocadinho mas eu tirei o queimado com uma faca e ficaram boas! – explicou.

A mãe não pôde deixar de sorrir à explicação avançada enquanto se levantava com dificuldade e se encostava às almofadas da cabeceira. A perna foi devastada por uma espada de dor. O seu rosto contraiu-se. Não conseguiria aguentar-se muito tempo naquela posição. Olhou para o tabuleiro: uma chávena com leite morno, duas torradas de carcaça e um guardanapo em cima do qual descansava uma colher de sobremesa!

A mãe despachou-se a comer para evitar a dor que ameaçava tornar-se mais forte! Olhou o pão que não tinha vestígios das desagradáveis queimaduras negras. Comeu as duas torradas empurrando o pão com o leite sempre tentando encontrar uma posição que diminuísse consideravelmente a dor que se tornava cada vez mais insuportável. Acabada a refeição, colocou o tabuleiro ao seu lado gemendo baixinho de dor. Agradeceu alegremente à filha que pegava no tabuleiro e o colocava num sítio seguro muito contente com a sua iniciativa.

- E tu, já comeste?

Inês acenou afirmativamente.

- E o que é que a minha menina comeu?

- Ora, o mesmo que tu! – respondeu com vivacidade encarando a mãe – Leite com chocolate e torradas!

Subitamente uma voz ensonada, vinda do quarto do irmão da menina, elevou-se no ar:

- Inês, traz-me também o pequeno-almoço à cama!

- E a mim também! – pediu uma risonha voz ensonada do quarto oposto.

Ouviu-se a voz da pequena indignada:

- Olha, vão vocês preparar! Vocês não estão doentes. A mãe é que está!

Voltou-se para a mãe à procura de apoio. Esta piscou-lhe um olho risonho e cúmplice.

- Estão a brincar contigo! – sussurrou encostando o indicador aos lábios.

Sentou-se depois junto da mãe, evidenciando um ar importante que na realidade não sentia e começou a ver os desenhos animados deitando uma olhadela de vez em quando à mãe que, ao seu lado, abria um livro e começava a ler para passar o tempo sem desesperar!

O tabuleiro levá-lo-ia mais tarde quando descessem todos para almoçar.

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Sexta-feira, 16 de Abril de 2010

Mãe, gostas de mim?

Inês era pequenina quando colocou esta questão. Teria três anos no máximo. Talvez nem tanto. Foi a primeira de algumas que viria a fazer posteriormente. Tendo sido uma querida e grande surpresa, a mãe estranhou a questão. É a mais nova da família, tem onze anos de diferença do irmão e oito da irmã. Todos sempre lhe haviam dispensado muita atenção e carinho. Ainda assim, ela colava-se à mãe durante os momentos de pausa e repetia a questão como se quisesse assegurar-se da veracidade dos sentimentos ou porque tivesse necessidade de ouvir várias vezes da boca da mãe ou porque necessitasse de mimo. A mãe abraçava-a, beijava-lhe as madeixas escuras que lhe chegavam aos ombros. Mas parecia não chegar. Periodicamente, lá vinha a mesma questão nascida não se sabia bem do quê.

Uma noite, estavam as duas recostadas na cama da mãe, quando Inês voltou a questionar a mãe sobre os seus sentimentos por ela. A mãe percebeu que era sério. Inês tinha de perceber o quanto era importante na sua família, não sabia bem porquê. Sempre fora a pequenina, a menina de todos. Havia sido criada pela mãe e os irmãos com a ajuda preciosa dos avós.

A mãe fez uma pequena incursão no passado. Não fora fácil. Ficara grávida na altura exacta em que se estava a separar. Os enganos haviam sido a parte que a marcara mais. O muro emocional desmoronara-se. Sentira-se impotente perante o novo rumo da sua vida. Tinha dois filhos e vinha outro a caminho. Como seria a vida dali para a frente? Conseguiria enfrentar sozinha o mundo e tudo o que de difícil ele tem? Duvidara de si. Não duvidara nunca da vida que crescia dentro de si. Foi ao médico que confirmou a existência da vida dentro de si. Dada a idade avançada deveria fazer um exame para saber se estava tudo bem com o bebé. Não quis. Não conseguia aguentar outra perda. Assumiria o pequeno ser tal como viesse ao mundo. Passaram-lhe pelo pensamento algumas ideias aparentemente assustadoras que acabara sempre por suavizar. O amor suaviza tudo. No amor não há medo!

Nesse momento, a mãe decidiu que arranjaria uma história que a levasse a ter noção do amor da família por aquele pequeno ser. Pensou um pouco, enquanto abraçava carinhosamente a sua pequenina. De repente, lembrou-se de uma expressão do seu pai, já velhote, que parecia perdido num país longínquo, enquanto repetia para si em voz alta “Esta menina não tem culpa de cá estar. Esta é que não tem mesmo culpa de cá estar!” Esta fora uma expressão que marcara profundamente a mãe de Inês. Apercebera-se, sem esforço, da importância daquela menina. Surgira por acaso. Não fora planeada, contudo a mãe nunca duvidara em acolher aquela milagrosa prenda da vida. Então, começou a falar baixinho, enquanto a apertava contra si:

- Sabes gosto de ti desde que tinhas este tamanhinho assim. – e juntava o dedo polegar ao dedo indicador para a fazer entender.

Inês observou-a encantada. Juntou por sua vez os dois dedos da sua pequena mão imitando o gesto da mão.

- Não – observou – tu gostas de mim desde que era deste tamanhinho. E estreitou ainda mais o espaço entre os dedos.

- Nem mais! – concordou a mãe – Desde que soubemos da gravidez, isto é, que tu estavas dentro da minha barriga todos nós nos apaixonámos pela ideia – eu, a mana e o mano. Sabes o que fazia a mana? Punha-se debaixo do lençol e cantava baixinho junto da barriga para que tu conhecesses a sua voz. Outras vezes, contava-te histórias sobre nós. Adorou a ideia de seres uma menina!

- O Bruno não. Queria um menino para o ensinar a jogar à bola! – sentenciou a pequena.

- É verdade. O Bruno não sabia muito bem como brincar com uma menina. Mas, depois, habituou-se de tal forma à ideia, que passou a adorá-la. Observava as meninas que encontrava e passou a achar-lhes muita piada. Mas há mais… - acrescentou num tom misterioso. Inês aconchegou-se mais à mãe – Sempre que tinha de sair para tratar de algum assunto e não demorava muito tempo, os manos ficavam contigo e tomavam conta de ti. Uma vez, demorei-me mais um pouco e cheguei a casa preocupada. Fiquei admirada ao observar a mana a mudar-te a fralda e a limpar-te o rabito, enquanto o teu irmão, apavorado, tinha medo que ela fizesse alguma coisa mal que te pudesse prejudicar. Quando cresceste e começaste a andar, andavam sempre atrás de ti com medo que caísses. Um dia, quando fomos a um restaurante, tu quiseste experimentar uns baloiços que lá havia. Era uma espécie de túnel com algumas escadas e um escorrega. Tu desembaraçavas-te bem. Ainda assim os manos, enquanto comiam, observam-te com medo que os outros meninos te pudessem magoar, empurrar. Aconteceu isso uma vez e os teus irmãos levantaram-se imediatamente da mesa para irem pôr ordem no parque. Estavam sempre atentos não fosse algum deles voltar a empurrar-te. Como eras muito meiga e não te sabias defender, faziam isso por ti.

A partir dessa altura, a questão muitas vezes repetida, fora substituída pela brincadeira dos dedos. Inês aprendera que desde muito cedo, desde que não passava de um pequeno ponto na barriga da mãe, fora, desde logo, desejada e muito amada, apesar das contrariedades da vida por que passara. Desde então, parecia mais segura de si e nunca, nunca mais voltara a questionar a mãe sobre tal assunto.

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Domingo, 11 de Abril de 2010

Inês e a tabuada

Segunda-feira. A tarde quente acompanha o sol na sua viagem circular. Ao contrário das outras sempre cinzentas, húmidas e escuras, este dia trouxe um sabor prematuro a Primavera. Na rua calma, esvoaçam pequenos pássaros numa dança exótica. Os eucaliptos dançam ao sabor da brisa e cantam louvores ao astro destapado pelas implacáveis nuvens. É um dia especial. As paredes, de onde escorrem desagradáveis tintas azuis, abrem os braços ao ar queimado pelos raios solares. Da casa ao lado, o silêncio marca a ausência de seres mergulhados em tarefas distantes.

São duas horas. A campainha da escola marca o fim do matinal período escolar. Inês corre para o enorme pátio em busca do largo rosto engelhado da avó materna. Encontra-o do lado de fora das grades junto ao rosto fiel e submisso do avô que pergunta constantemente quem é que anda naquela escola. A esta pergunta a avó vai respondendo com alguma impaciência. A doença faz esquecer o avô. A sua memória mais recente não retém informação, funciona como um saco vazio. A resposta entra no cérebro para logo fugir por um qualquer sítio mágico.

Inês traz às costas a mochila com o material escolar. É pesada mas não se importa. Trocou-a há dias pela sua pasta de rodinhas da qual já está saturada. Imita os irmãos ou as colegas ou talvez esteja farta de arrastar atrás de si um peso que lhe limita os movimentos. É pesada mas não se importa. Prefere assim. E não há argumento que a possa demover.

Apanharam o autocarro que os levará até metade do trajecto que leva até casa. O autocarro não está muito cheio, mas os poucos lugares sentados estão, quase todos, ocupados. O único banco livre é ocupado pelo avô que tem muita dificuldade em se equilibrar nos saltos e curvas desenhados pelo autocarro. Inês observa o ambiente à sua volta. A maioria das pessoas que viaja no pequeno meio de transporte é idosa. Algumas admiram a paisagem como se a avistassem pela primeira vez ou como se tivesse sido atacada por uma alteração muito curiosa ou sensacional. Duas idosas não param de tagarelar referindo-se a eventos e pessoas desconhecidas. Inês, de pé, junto da avó, tenta equilibrar-se o melhor que pode. Subitamente, sente os olhos das duas conversadoras poisarem na sua pequena estatura séria. Desconfiou. Não gosta de pessoas que falam de outras. Iriam referir-se agora a si? Desviou os olhos timidamente. Uma voz alta sobrepôs-se ao ruído do motor do transporte.

- A menina tem uma mochila muito pesada às costas. Só faz mal à coluna.

A outra concordou, tendo ido logo buscar uma quantidade de desgraças de que tivera conhecimento durante toda a sua vida.

Inês detestou as duas senhoras. O que é que elas tinham a ver consigo?

Desviou a cara para a face da avó. Em cheio! Era ainda pequena mas já percebia que certas afirmações feriam a dignidade da avó. Iria arranjar discussão por aquilo. Mergulhou o olhar duro nas duas impertinentes senhoras.

Saíram na primeira paragem aguardando calmamente a chegada do outro que os levaria até ao fim da linha. Não demorou muito. A avó, num gesto brusco, puxou a pesada pasta das costas da neta e colocou-a bruscamente no chão. Uma ameaça de discussão perpassou o ar impregnado de água. Com a visão nublada, Inês sabia que aquela era a reacção consequente da observação realizada pelas senhoras. Não haviam dito nada de novo. Toda a gente sabe que os pesos fazem mal ao esqueleto humano e que as pastas dos meninos são muito pesadas, fora o tom utilizado que ferira os sentimentos da avó. Ficou quieta e determinada. Continuaria a carregar o pesado saco até que lhe apetecesse. Todos faziam o mesmo. Não havia volta a dar ao assunto. A não ser que deixasse algum material em casa… Era parvoíce. Resolveu pensar noutro assunto. Estava ansiosa por chegar a casa e fugir daquela irritante chuva que os mergulhava a todos numa disposição terrível. E em casa estava a mãe que a ajudaria nos trabalhos de casa, logo que acabasse de almoçar. Era bom ter a mãe em casa, apesar de estar doente. Inês sentia-se impaciente.

O autocarro parou afastado do passeio evitando molhar as pessoas que rodeavam cuidadosamente o inesperado lago artificial, comodamente alojado no alcatrão.

O calor desprendido do veículo reconfortou-os. Este estava mais vazio e havia espaço para se sentarem todos. Inês ocupou um lugar junto do vidro enquanto os avós se sentavam do outro lado do corredor, na mesma fila. Agora era um instantinho!

Na nacional, as pessoas afastavam-se cuidadosamente para a berma da estrada permitindo aos transportes cruzarem-se facilmente, sem correrem o risco de serem apanhadas.

A casa da Inês fica fora do centro da localidade onde vive. Só há pouco tempo a Câmara disponibilizara transporte capaz de levar as pessoas dos arredores até à cidade. Acabara-se o isolamento. Da paragem até ao seu acolhedor lar, teriam de caminhar uns escassos trezentos metros sobre um passeio largo.

Numa corrida ligeira, protegida pela sua longa capa vermelha, a menina depressa tomou a dianteira para abrir o portão e a porta de entrada.

Descalçou as botas e subiu ao primeiro andar para abraçar a mãe e contar-lhe as novidades, enquanto os avós se instalavam no piso inferior arrumando peças de mercearia trazida do carrinho das compras.

Vestiu o fato de treino e voltou a calçar as pantufas. Pendurou a roupa na cadeira e sentou-se na cama ao lado da mãe.

Retirou o caderno da pasta e o estojo. Trazia trabalhos de casa de Matemática. Está a aprender as tabuadas do dois, do três, do quatro e do cinco. As contas com transporte são também um grave problema para si. Como é muito distraída, esquece-se sempre dos números que vão de trás na adição e na subtracção. A mãe está a ajudá-la. Divertem-se muito juntas. Se se enganam riem-se muito e voltam a concentrar-se na matéria estudada.

O Avô, a certa altura, incentivado pela avó, juntou-se-lhes. Já tinham ultrapassado a fase das contas, estavam agora a tentar memorizar a tabuada. O avô sentou-se na cadeira disponível aos pés da cama, virado para elas. Estava muito atento ao que diziam. Subitamente, a mãe lembrou-se de o integrar na brincadeira afastando-o do seu mutismo. E começou a brincadeira da tabuada. Quando Inês não respondia, o avô, com a rapidez de uma calculadora, respondia correctamente a todas as questões. Inês, mais atrasada virava-se admirada para o seu idoso avô. Espertas, as duas experimentaram toda a tabuada e… ele acertou em todas. Se Inês o tentava enganar, na brincadeira, ou se enganava, ele respondia prontamente que era mentira corrigindo de seguida o erro.

Passados uns instantes, a avó, alertada pelo alarido dos risos e das palmas batidas ao sucesso do idoso, juntou-se-lhes admirada com a habilidade do marido. A doença ainda não matara a sua memória mais longínqua. Pelo menos não atingira ainda a escolar.

- É bom saber a tabuada e responder assim depressa – observou Inês admirada.

- Para tal – respondeu a mãe – terás de a repetir muitas vezes até a saberes.

Inês ficou pensativa. Se fosse sempre como naquela tarde, até que seria divertido aprender a tabuada. As contas eram divertidas!

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Sexta-feira, 11 de Setembro de 2009

Noites infinitas

Todas as noites se repetia o mesmo ritual. Mariana saía de mansinho pela porta das traseiras e encavalitava-se em cima do muro, olhando a imensa abóbada escura e longínqua toda salpicada de brancos e pequenos pontos brilhantes que adornavam a longa cabeleira negra da lua. Esta, nas claras noites de verão, vestida de um branco amarelado e redondo, sob o qual se salientavam as suas formas escuras, sorria placidamente ao encanto infantil cujos olhos, pregados na misteriosa imensidão, pareciam esperar pacientemente por algo importante. O rechonchudo rosto amarelo, habitualmente descontraído e altivo, passara a revelar uma certa timidez, pensando que os olhares se dirigiam a si. E no início fora assim. Aqueles olhos infantis pareciam dotados de um magnetismo capaz de descartar qualquer tipo de capa que pretendesse ocultar a mais ínfima partícula do seu ser. Ao princípio reagira timidamente, depois, já habituada aos profundos olhares curiosos da criança, ela descontraíra-se e, passados uns meses, foi com tristeza que notou que os olhares se haviam desviado da sua face, para se colarem algures na profundidade espacial. Dir-se-ia que viviam momentos íntimos que escapavam à maioria dos olhares dos comuns mortais. O interesse não estava relacionado com tradições populares ou outras crendices próprias de alguns adultos fascinados como oculto. Era, definitivamente, diferente. Poderia apostar o seu brilho em como ele era simplesmente… científico. Nada mais, nada menos. Mas parecia haver mais, uma determinação serena acompanhava as vigílias nocturnas, mesclada de um sentimento que ela não conseguia identificar. Mas, tal como aquele olhar profundo e arguto que perscrutava o negro silêncio espacial, também ela se interessara por aquela figura alta e esguia, curiosa por descobrir as motivações secretas da sua fiel presença. Estava certa de haveria mais e estava decidida a descobri-las.

  Sempre que se encontrava sozinha, ou se aborrecia da brincadeira, o muro era o local onde habitualmente se refugiava, nas noites brilhantes de verão. Não se pode dizer que Mariana fosse uma criança diferente das outras. Nada disso. Integrava-se perfeitamente nas brincadeiras desfrutando com a mesma alegria de todas elas. Contudo, por vezes, elas pareciam não resultar. E nem sempre a culpa era de Mariana, apesar do que a mãe, habitualmente, lhe queria fazer crer. Nem tudo dependia só dela. Os outros com quem brincava também tinham a sua responsabilidade na nefasta evolução das brincadeiras. Sim, porque, muitas vezes, Mariana nem percebia exactamente o que se passava. Na maior parte das vezes, nem queria saber. Intuitivamente sabia que não era bom, mas nem queria saber de quem era a culpa, embora ficasse muitas vezes a pensar se seria sua. Mas não perdia muito tempo a pensar no assunto. Independentemente da sua vontade, os problemas pareciam solucionar-se magicamente. Parecia um ciclo ao qual haveria de se habituar. Este estava, muitas vezes, preso aos caprichos de quem não se debatia com problemas de solidão. E esta, Mariana conhecia bem. Talvez, por isso mesmo, ela tivesse aprendido a dar-lhe utilidade.

  Lá em cima, do seu alto poiso, a lua observava a criança absorta na sua investigação nocturna. O que a intrigava era a serenidade com que ela o fazia. Era como se não esperasse nada de novo, mas algo que lhe seria familiar. Era estranho… Bem, não seria propriamente estranho, uma vez que ela já tinha testemunhado muitos dos denominados fenómenos não pertencentes ao planeta em cuja órbita rodava incessantemente. Já observara de tudo e a todos fora fiel na sua cumplicidade. Não se interrogava sobre nada, apenas aceitava a vida tal como era. Tal como aceitara ser observada e, mais tarde, tocada pelo pé do homem.

  Mariana estava sentada em cima do muro, já há algumas horas, observando as estrelas. Não se preocupava em saber os seus nomes ou as suas formas, apenas lhe interessava apreciá-las e interrogar-se sobre a sua existência. Será que elas ainda lá estariam? Saberiam elas da sua existência? Será que estavam todos mesmo interligados? Que elas libertavam energia e que ela se espalhava pelo universo, isso não era novidade… mas de que forma se absorveria essa mesma energia? O que faria com que os planeta se mantivessem todos no mesmo lugar, descrevendo uma órbita à volta da mesma estrela? Porque não cairiam eles pelo espaço abaixo? Seria o espaço um sítio tão equilibrado e estável, sereno mesmo quanto aparentava? Esta e outras questões saltavam frequentemente a mente de Mariana. Era frequente pensar, na sua qualidade de ser humano pouco compreendido pelo seu entorno familiar e amistoso que parecia não pertencer ao planeta que parecia habitar devido à amabilidade de alguém. Era como se estivesse de visita… Sentia, lá no fundo do seu ser, que não era igual às outras crianças que a rodeavam, para já não falar dos adultos... Era como se ela tivesse algo que outros não possuíam, algo que nem ela mesmo sabia o que era. Algo que só o espaço, juntamente com os seus fenómenos e mistérios, saberia explicar. Algo que, por mais que se esforçasse, parecia impedir a sua integração junto dos outros. A sensação de não ser compreendida nem pelos seus próprios pais era diária. O que era ela afinal? Ela já tinha a explicação para quem era, mas o que era? Aparentemente tinha tudo igual a todos aqueles que a rodeavam, de nada se diferenciava deles. Então o que se passava? Por que é que a sua integração junto dos outros era tão difícil? O que é que os separava? O que é que… Os pensamentos bailavam suavemente dentro da cabeça da criança, desenhando coreografias desafiadoras.

  Subitamente um ruído despertou-a da sua observação meditativa. Olhou à sua esquerda. O seu vizinho regava as plantas que, com tanto carinho, plantara nessa Primavera. Era o jardim mais bonito do bairro. Separado dos outros por um baixo muro caiado, a forma quadrangular estava emoldurada por um canteiro onde várias flores, de várias formas e cores, aguentavam estoicamente o calor que lhes chegava como flechas flamejantes, ameaçando a suas texturas acetinadas. Era à noite que o cântico das plantas pairava no ar como suaves borboletas festejando o ar morno impregnado do perfume a terra húmida. Ao centro, o pinheiro escandinavo espreguiçava os elegantes ramos ocupando todo o resto do espaço do canteiro central. Era como se uma orquestra vibrasse sob as ordens do grande maestro. Era por ali que Mariana se perdia, nas tardes serenas e mornas, admirando a forma e o aroma de cada flor. Por vezes, era surpreendida pela vizinha do primeiro direito que, muitas vezes, a surpreendia e a admoestava por entrar num espaço sagrado. Considerava-se uma espécie de guardiã daquele espaço. Mariana sobressaltava-se sempre que tal acontecia, mas ela sabia bem a razão uma vez que nada de mal sucedia ao jardim durante a sua deambulação sonhadora. Uma vez chegara mesmo a informar o vizinho das suas frequentes visitas. Ele pedira-lhe um dia que prescindisse dos seus devaneios pelo seu jardim, temendo pela saúde das suas plantas, embora, lá no fundo, soubesse que nada de mal poderia vir dessas visitas. Ela, simultaneamente envergonhada e triste com a falta de confiança, concordara em obedecer e ele ficara mais descansado. Ali estava ele nesse momento, esticando a mangueira cor de laranja e transformando a água num abundante duche suave que deliciava as plantas sequiosas.

  Desviou o olhar para o fixar novamente na profundidade espacial. Como tudo parecia sereno e equilibrado lá em cima, como se uma força poderosa a sustentasse. Tudo parecia obedecer a uma força poderosa. Mariana instintivamente sabia que aquela escuridão encerrava muitos mistérios, mais do que alguma vez ela conseguiria dimensionar. Para si, aquela escuridão era infinita e ultrapassava em muito a imagem do livro de geografia onde os nove planetas, não contando com o satélite da Terra, se encontravam alinhados, descrevendo as suas órbitas à volta do sol como se fossem embalados por um carrossel gigante. Mas era das estrelas que mais gostava. Fenómenos encerrando nelas toda a luz do universo, como se de velas se tratassem em cima de um bolo de cobertura cremosa e escura.

  Os ruídos da mangueira arrastando-se pelo chão combinado com o da pressão da água abatendo-se sobre as delicadas folhas, sugaram a atenção de Mariana. Ficou por momentos olhando aquela figura alta e elegante atenta aos próprios gestos. Conhecia o vizinho desde que se conhecia a si própria como pessoa. A sua imagem confundia-se com a de um pai, atento, carinhoso e inteligente. Também ele era uma pessoa inadaptada. Parecia também ele encerrar dentro de si todo um conhecimento que escapava aos outros mortais. Presente e ao mesmo tempo enigmático, tratava-se de uma pessoa avançada para a sua época.

  Mariana voltou o rosto para o ilimitado céu mudo onde as estrelas pareciam acenar-lhe alegremente. Mariana abriu a boca num longo bocejo. Nada de novo. Aquele céu parecia uma colcha escura salpicada de pedras preciosas. Mariana começava a sentir-se cansada. Sempre sentira que olhando o vasto espaço, encontraria um indício, a resposta para as suas inquietações. Sempre sentira que viria alguém resgatá-la na sua nave espacial, levando-a para o local onde verdadeiramente pertencia. Quanto mais passava o tempo tanto mais crescia a frustração e o desânimo de Mariana. O céu estava morto, indecifrável, e nada de interessante sairia dele.

  Levantou-se e dirigiu-se cabisbaixa para a silenciosa porta que a esperava pacientemente, erguendo a cabeça de vez em quando, para o teimoso céu fechado. Imóvel, sereno, distante.

  Ao aproximar-se das escadas, viu o vizinho do outro lado do muro que a olhava com simpatia. Desenroscava a mangueira da torneira preparando-se para a enrolar. Subiu as desanimadas escadas parcamente iluminadas pela lâmpada da porta ao lado. Engraçado, ele nunca tratava a casa como se lá pertencesse. Esta não era mais do que uma das muitas estações onde ele permanecia algum tempo, entre viagens, e onde aglomerava os seus poucos pertences. Também ele não tinha uma casa. Passava a vida viajando pelo mundo, não pertencendo verdadeiramente a lado nenhum. Antes que pudesse cumprimentá-lo, ele lançou-lhe:

  - Alguma novidade?

  Mariana olhou-o com curiosidade. A que se referiria?

  O senhor levantou um pouco a cabeça que reflectia a luz, momentos antes inclinada sobre a tarefa desempenhada com a cadência de sempre, e observou-a com os olhos travessos colados às pálpebras, enquanto os lábios finos se mantinham firmes no seu traço. Havia um tom ligeiro na sua voz que o desenho dos lábios contrariava. O riso desprendido no olhar insinuava segredos calados na gravidade da sua voz.

  Seria imaginação sua? Sempre o considerara uma pessoa excêntrica e boa, mas cuja vida não passava de um segredo. Ninguém sabia nada dele, o que levava as pessoas a respeitá-lo sem contudo confiarem demasiado. Consideravam-no uma pessoa inteligente e justa embora considerassem as suas ideias peculiares. A verdade é que ninguém possuía uma cultura que ultrapassasse a sua. Parecia ter engolido as experiências da vida de um só trago e retirado delas as conclusões mais razoáveis. Falava com a mesma convicção mantendo-se coerente com o que defendia.

  A pequena corou. Ele apontou para o pilar do muro que segurava o largo portão verde de alumínio. Ela sentava-se lá desde o início do verão.

  - Não precisas de ficar embaraçada. Sabes que há uma razão para tudo o que fazemos? – interrogou-a parando os movimentos sincronizados.

  Deu meia volta e refugiou-se em casa onde a mangueira desapareceu na obscuridade. Mariana ouvia-o a remexer os objectos da sua cozinha transformada numa improvisada arrecadação. Regressou momentos depois, com as chaves da garagem na mão direita. Ia arrumar o carro na garagem. Era um velho volkswagen creme cujo motor a diesel fazia tremer os alicerces do velho prédio.

  - Fazes-me um favor? Abres-me o portão do quintal? – pediu enquanto se dirigia ao decrépito portão alto cuja porta parecia sofrer de uma grave doença de pele. Escamava-se rudemente e a chapa leve se tingia de uma cor acastanhada que a atacava em diversos pontos, vítima das inúmeras intempéries a que estivera sujeita durante anos, parecia inchada como se a escamação a roesse interiormente semelhante a um cancro invisível.

  Mariana olhou a porta adormecida da sua casa. Ainda não lhe apetecia dormir. Não depois da decepção que apanhara. Tinha de haver uma explicação para o que sentia. Então por que via as suas tímidas tentativas goradas? Resolveu colocar um ponto final aos pensamentos que a atormentavam e seguiu a figura que desaparecera na esquina do prédio e já removia o largo portão deixando o espaço protegido pela obscuridade que aninharia o carro. Dobrou a esquina do último retalho de quintal para a esquerda e dispôs-se a abrir o baixo e largo portão. Os passos largos e pesados afastaram-se ao longo da largura do prédio para desaparecer à esquerda. Alguns minutos depois, ouvia o potente motor a vibrar na sua direcção. Fechou o portão da rua e olhou para o céu. Nada se modificara nele. Pelo menos que notasse. Como era possível sentir algo sem nunca ter nada que o pudesse confirmar? Sobressaltou-se ao sentir uma presença junto de si. Olhou-o de relance. Também olhava as estrelas com um misto de saudade e frustração que a intrigou. Seria que ele sentia o mesmo que ela? Para grande surpresa sua, aquela figura alta e enigmática sentou-se no muro observando o céu como se o tempo se tivesse esgotado. Mantiveram-se durante algum tempo em silêncio até que ele falou com uma expressão grave não tirando os olhos do céu.

  - Tu sabes que existem extraterrestres entre nós, não sabes? Só que são tão discretos que nós não damos por eles. – ele analisou a sua reacção. A pequena ouvia com interesse. Ele continuou. – Já sentiste que não tens nada a ver com os teus companheiros de brincadeiras e da escola, que és diferente deles. Já pensaste porque será?

  Mariana deixou-se ficar calada com o coração batendo ferozmente no peito. Olhou-o ansiosamente. Será que aquele homem ainda novo que parecia ter dentro de si conhecimentos que remontavam aos princípios do tempo teria a resposta para as suas questões?

  - Já percebeste que enquanto as tuas amigas dedicam todo o seu tempo à brincadeira parecendo movimentar-se no seu meio natural, tu arrastas-te com questões que fogem à tua idade? Já percebeste que há uma razão para isso? Então poderemos ter esta conversa que ando a adiar à espera que chegasse a altura apropriada. Tu sabes que nunca te menti, não sabes? – A pequena acenou afirmativamente – Tens de me prometer que vais ouvir com atenção até ao fim. Eu vou explicar-te tudo por palavras simples para que compreendas… De resto, eu sei que estás já tão familiarizada com a ideia que não vais ter medo de nada do que te disser. Decerto que não irás uma vez que já estás familiarizada com a ideia. Vamos mais para aqui – disse empurrando-a docemente na direcção do muro oposto para evitar sermos ouvidos por outros aqueles que já nos estranham. Antes de começar deves prometer-me que não contarás nada a ninguém, uma vez que a nossa segurança e a de outras pessoas depende nós, estás a perceber?

  Instalaram-se comodamente debaixo do candeeiro público que vertia calorosamente a sua luz na sua direcção. O homem respirou fundo e calou-se com se estivesse à procura das palavras certas para começar a história.

  -Esta é a tua história. Esta é também a minha história e a de muitos outros que se encontram espalhados por este mundo fora – confidenciou ainda reticente, para ter a certeza de que ela percebia a responsabilidade do que estava prestes a contar – pelo que não estás, não estamos sozinhos… Como deves calcular, não estando no seu meio, fazem tudo para passarem despercebidos aos humanos, o que não é fácil, uma vez que eles parecem estranhar até os da sua própria raça. Tens de fazer outra promessa, os humanos não são melhores do que nós em nada, talvez sejam até piores em certos aspectos, mas mesmo que estejam errados não vamos influenciar o seu modo de vida ou a direcção que seguem, seja ela a certa ou a errada, nós somos meros hóspedes, e o facto de vivermos entre eles, não nos dá o direito de interferir nas suas vidas, ouviste? Seja em que aspecto for, compreendes? Eles ainda não estão preparados para saber da nossa existência. Não sei se alguma vez estarão… Agora, por onde hei-de começar? Talvez pela forma como viemos aqui parar, tu e eu…

 Inspirou fundo como se tentasse ganhar coragem para enfrentar uma história que parecia pesar tanto como o mundo.

  - Nós não pertencemos a este planeta nem a esta constelação. Vimos de uma outra, muito longe daqui, do outro lado oposto desta fronteira em expansão e pertencemos a uma constelação denominada Kohespeía. Ocupávamos o planeta Uheita, com umas características muito diferentes deste, embora intrinsecamente todos tenham a mesma composição, o resultado final pode sofrer alterações. Refiro-me por exemplo à morfologia das plantas, dos animais… A nossa civilização, nós somos uheitas, era respeitada e admirada por todas as circundantes com as quais vivíamos em paz e cooperação. Quando falo em civilizações vizinhas refiro-me a espaços que levam centenas, milhares e mesmo milhões de anos a percorrer… Não dependíamos tanto da tecnologia no nosso quotidiano como acontece com os humanos, limitando-nos a desenvolver as nossas potencialidades enquanto seres racionais. A nossa estrela mais próxima, a Kolomon, fornecia a luz e o calor necessário à manutenção do planeta e desde o mais ínfimo ser ao maior, todos dependíamos dela. Ao contrário do que acontece aqui, nós não nos regíamos pelo dinheiro, mas pela palavra. Tudo quanto tínhamos era de todos e para todos. Não havia polícia porque cada um sabia a responsabilidade que tinha e sentia-se merecedor dela.

   Por que fala sempre no passado? – interrogou a garota desconfiada temendo o pior – O que aconteceu?

 – Aconteceu aquilo para o qual não estávamos preparados. – respondeu melancolicamente o homem. – Já ouviste dizer que o sol, a estrela que ilumina o planeta Terra, está a morrer?

  – Sim, já li isso num livro de ficção científica. – respondeu a miúda. E contou-lhe em poucas palavras, o enredo da estória.

  – Então, consegues entender que todas as civilizações estão preparadas para tudo, menos para as consequências da morte de uma estrela como o Sol ou a Kolomon. Foi o fim de toda a civilização tal como a conhecíamos. Tivemos de abandonar o planeta o mais rapidamente possível e espalharmo-nos quanto antes pelo espaço. Foi um período conturbado. O processo da morte de uma estrela é medonho dado o resultado. Muitos dos nossos encontram-se noutros planetas que fomos encontrando pelo caminho. Dispersámo-nos pelo que é mais difícil darem por nós. Vivemos infiltrados noutros planetas também e, de vez em quando, vêm-nos visitar. Mas é sempre arriscado, uma vez que não conseguimos passar despercebidos. Há sempre um humano curioso que se atravessa no nosso caminho e nos denuncia. Há, infelizmente, alguns acidentes a registar mas, de uma forma geral, conseguimos passar despercebidos, uma vez que os interesses humanos são muito distintos dos nossos. Agora, como vieste até aqui? Depois de evacuarmos todos os nossos compatriotas, o nosso planeta não estava dividido em países, éramos uma grande nação, e todos nos podíamos deslocar sem problemas e percorrer grandes deslocações sem problemas, uma vez que não precisávamos de mei de transporte. Conseguíamos, conseguimos desintegrar-nos num determinado espaço e surgir num outro mais ou menos distante, projectando nesse espaço a nossa mente. Muitos de nós, sobretudo os mais pequenos, cujos pais não conseguiram sobreviver à morte da estrela, foram entregues em locais onde sabíamos que poderiam tomar conta deles. Tu foste colocada numa maternidade junto de outros recém-nascidos e criastes-te junto deles por aqueles que conheces como pais. Achámos por bem não te contar, uma vez que nada sabias do teu passado e foras criada por humanos. O que não sabíamos é que terias tantos problemas. O pior de tudo é o pai daquela tua amiguita que percebe as tuas capacidades e tem a falta de inteligência leva-o a comparar-te com a filha… Afasta-te dele. Mas tu já percebeste, não percebeste? Melhor assim… Mesmo assim, as diferenças entre ti e os humanos são grandes. A maneira de pensar não é, nem de perto a mesma, nem a de sentir… Tu estás numa situação difícil. És humana na criação mas é uheita na maneira de agir, pensar e sentir, o que se torna complicado. Não pertences a um lado nem a outro. Eu sou a tua única ligação àquele mundo agora desaparecido. Nem sei se os nossos conseguirão alguma vez identificar-te se se cruzarem contigo. – Aqui parou e fechou os olhos num recolhimento profundo. – Conseguem. Estarás sempre a salvo. Eles conseguem identificar-te onde quer que estejas, mas não intervirão. Chegará um dia em que terás de escolher entre este ou o nosso mundo. Aqui, já percebi que não és feliz. Não sei se alguma vez serás… Eu posso avaliar por mim. Não é fácil perceber uma civilização que se deixa comandar pelo dinheiro. Onde tudo é avaliado pelo lucro que dá… até o próprio ser humano. É revoltante, mas é o que temos. O que nós tínhamos era uma união grande entre os da nossa espécie e foi isso que nos tornou a civilização admirada e respeitada entre todos os que lidaram connosco. Há lendas que, ainda hoje, falam do nosso desaparecimento e de tudo quanto construímos. E estou a falar de várias civilizações, muitas delas muito diferentes da nossa. Este planeta, dada a distância do nosso, foi por nós visitado uma vez, estavam em plena guerra, uma das muitas que constam da sua longa História, pelo que não nos aproximámos. Só o fizemos agora por necessidade. Há medida que avançámos no espaço, fomos entregando muitos dos nossos. E foi neste que te tocou viver… que nos tocou viver. Só quero deixar bem assente que não tens de viver assim toda a tua vida, tu podes, a qualquer altura, optar por seres uheita, pelo que terás de deixar de viver a vida da forma como a conheceste até aqui para passares, digamos assim, à clandestinidade. A nossa civilização morreu, mas a nossa cultura está viva e, desde que não choque com a dos humanos, não vejo razão para não ficarmos por aqui até que consigamos um planeta vago, onde possamos estabelecer-nos. À velocidade a que o espaço aumenta, alargando as suas fronteiras, criando novos sistemas solares, depressa encontraremos um para nós. Basta termos paciência. As nossas buscas continuam e cada vez que os nossos exploradores voltam com novidades a nossa esperança aumenta. Tem fé, já não falta muito.

  – Conheceste os meus pais? Tenho irmãos? O que aconteceu à minha família? – a voz rouca da rapariguinha fez-se ouvir num murmúrio.

  À sua volta, os campos gorgolejavam de vida. O voo isolado de um pássaro numa rápida corrida para o ninho tapando à sua passagem as luzes tremeluzentes das candeias naturais que brilhavam a milhões de quilómetros de distância.

  – Só resto eu… perderam a vida ao salvar a de outros. Mas, como já expliquei, a nossa ideia de família não é igual à daqui. Nós formávamos a grande família uheita. Não há este conceito de família como se de uma tribo se tratasse. Compreendes? Qualquer uheitiano que tu encontres, e só o encontras se ele quiser ser encontrado, pertencerá à tua família assim como tu à dele. Mas no conceito deste planeta, eu poderia corresponder a um laço familiar de avô, já que és o bebé da minha filha mais nova.  Ela morreu ao dar à luz. O teu pai e irmãos morreram salvando a vida de outros. Tu és uma das poucas ligações familiares que me restam. Optei por ficar junto de ti, e acompanhei-te desde sempre, assim que percebi a civilização dos humanos. Tinhas de ter alguém para te proteger. Os teus pais humanos são boas pessoas, mas falta-lhes capacidade para entender o mundo tal qual ele é, nos seus tons cinzentos carregados e pretos. Desde que te conheces como pessoa que te lembras de mim junto de ti.

  – O nosso povo sabe onde estamos e como estamos? – perguntou Mariana observando as mãos que entrelaçavam os dedos. – E se sabem, como o fazem?

  – Bem… eu entro em contacto com eles através da mente. Não é sempre, como deves calcular, porque há humanos com o mesmo poder e, para evitarmos sermos detectados, e evitar bloquear-lhes as mentes, o que evitamos sempre, procuramos horas calmas para o fazer e não é sempre. Eles estão por aí espalhados, por esses países fora, distribuídos pelos diferentes continentes. É sobretudo na América que se encontram. Alguns daqueles povos conhecem-nos e sabem quem somos, mas nunca nos importunaram deixando-nos seguir a nossa vida enquanto eles vão à deles. Eles têm muitas histórias sobre nós. – O senhor virou para ela os seus olhos azuis metálicos que se contraíram num sorriso. – Eu vou-te ensinar a contactá-los para o fazeres quando decidires por que civilização optar. Lembra-te que tudo tem a ver com a concentração e as palavras antes pronunciadas servem de passaporte para a abertura do canal entre as mentes. É como a palavra-chave num computador que te dá acesso a um determinado espaço virtual. Estas palavras previnem que os humanos entrem neste espaço, como já sucedeu antes, quando ainda não tínhamos a certeza das capacidades dos humanos, porque não são todas iguais, ao contrário de nós. Tem a certeza de que os contactarás caso algo me suceda, para que te possam proteger quando eu já cá não estiver. Poderás fazê-lo também se te encontrares numa situação perigosa, da qual tens a certeza de que não te conseguirás desenvencilhar sozinha. Não poderemos colocar a nossa civilização ou o que resta dela em perigo por causa de uma leviandade, compreendes?

  – Como comunicarei com eles? Eu não aprendi a nossa língua! E se eu precisar deles, e se eles vierem em meu socorro como os identificarei? – inquietou-se a pequena, enquanto procurava digerir toda a informação em que mergulhara, fixando os seus olhos nas misteriosas estrelas.

  – É verdade. Não aprendeste. Mas basta que fixes estas palavras e todo o mundo até agora para ti desconhecido se abrirá para ti e toda a informação de que precisas te será dada. Alguém te tocará a mente e perceberás o que hás-de fazer e qual a aparência dele. Porque nós somos diferentes dos humanos, a nossa aparência é aquilo que nos faz passar despercebidos entre eles. E acredita que não vais ter medo da diferença. – acrescentou, rindo-se.

  – Por que não me contaste isso antes? – interrogou a miúda, sentindo-se frustrada. – Agora que contaste é como se tivesse encontrado o caminho para casa! Neste momento, tudo faz sentido. Eu sentia que não pertencia a sítio nenhum e agora compreendo porque tudo não fazia sentido…

  – E tu viveste entre eles, foste criada como uma deles… Imagina aqueles que chegaram com uma cultura enraizada, tal como eu, e tive de me moldar a esta civilização… – riu-se o homem cuja careca brilhava solenemente à luz artificial do candeeiro. Mas a essência é diferente, tens razão… Não somos tão diferentes assim, física ou mentalmente, somos na essência. Se quiseres na nossa natureza. Na nossa civilização, não há esta coisa de Bem e Mal, mas somente um equilíbrio que não se desfaz. Neste caso, os humanos são mais vulneráveis do que nós. Talvez por isso não confie neles. Há alguns que se distinguem pela sua natureza boa mas há outros que gostam de brincar com o fogo, usando o mal sempre com uma aparência de bondade. Nós não somos assim. Temos uma só natureza. Por isso não nos envolvemos com os humanos. Deixámos ficar de fora, levando uma vida paralela à deles, sem interferirmos nas suas vidas. Já agora tens de saber o teu nome e uheitiano.

   – Eu tenho um nome? – a pequenita arregalou os olhos.

   – Claro que tens. Antes de te colocar naquela maternidade já tinhas nome. Chamas-te Aquivatê. O meu nome é Arkeironé.

  A rapariguita repetiu os nomes num murmúrio, saboreando cada sílaba.

  – É bonito. O que querem dizer? – Mariana fixou o olhar no perfil masculino que se dilatou num sorriso, enquanto o rosto se voltava lentamente para ela.

  – O teu significa “brisa do mar” e o meu “regato inquieto”.

  A noite já ia avançada e o homem olhou para o relógio que luzia no seu pulso.

  – Não nos podemos dispersar. Vou ensinar-te as palavras que abrem o canal da mente para comunicares com os nossos. Concentrar-te-ás e dirás “Aquivatê kurindo isi abaêtê.” Queres experimentar agora? – sussurrou olhando em volta na certeza de que ninguém os via ou ouvia.

  Mariana acenou duas vezes com a cabeça.

 – Concentra-te e diz as palavras. – comandou suavemente. A pequena fechou-se sobre si e abriu a mente. Diante de si apareceu um rosto desconhecido que lhe tocou a mente de tal forma que as palavras foram excusadas. O rosto não mexia a boca antes se exprimia de tal forma clara dentro de si que ela compreendeu tudo o que lhe era transmitido. Viu, a determinada altura, o rosto desviar-se noutra direcção e compreendeu que havia mais alguém a partilhar o seu canal. Depois das saudações habituais os dois seres partilharam sentimentos e ideias e, quando se despediram, Mariana viu o rosto bondoso voltar-se para si e recebê-la como se de uma filha se tratasse. Sentiu-se, finalmente, em casa. Despediram-se e o canal fechou-se. Mariana voltou-se para o seu vizinho e abraçou-o.

  – Obrigado por me ter contado a verdade. Sei que só agora estou preparada para entender tudo. Obrigado, mais uma vez! – exclamou emocionada.

  – Já sabes que estarei sempre aqui para o que necessitares. Enquanto estiver… depois de mim, já sabes como deves fazer.

  Uma voz ensonada surgiu na porta da cozinha entreaberta, clamando que eram horas de se deitar. O vizinho piscou-lhe o olho.

  – Está na hora de ires. Amanhã também tenho meu horário humano que devo respeitar se o quiser manter. – riu-se ele. – As férias acabaram!

  Dirigiram-se os dois às portas que se abriam lado a lado e nelas entraram com uma frase de “Boa noite”.

  A partir daquela noite, a sua vida não mais seria a mesma.

 

Fátima Nascimento

Agosto de 2009

 

publicado por fatimanascimento às 09:01
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Sexta-feira, 26 de Dezembro de 2008

O rapaz pobre

O vento forte pontapeava violentamente as folhas do jornal, que executavam verdadeiras acrobacias no ar. Uma delas chocou violentamente com a esguia figura triste de um rapaz, sentado em cima de um grosso tronco de árvore, completamente alheio ao que o rodeava. Afastou distraidamente a folha, que se manteve colada às suas pernas pela força do ar. Completamente alheado ao que se passava à sua volta, o rapaz jazia imerso nos seus pensamentos. Não era a sua roupa gasta ou o estômago vazio que o atormentavam. Já se habituara a isso. Também não era a solidão a que se votara, devido à incompreensão dos que o rodeavam. Não queria seguir o caminho dos outros, queria encontrar o seu. Começara por se aliar aos companheiros de brincadeiras, em busca da atenção, do apoio e do carinho que não só conhecera enquanto a mãe fora viva. Gostava de jogar à bola com os vizinhos da sua rua, verdadeiros craques da bola, mas que não encaixavam na sua maneira de pensar, sentir e agir. Eles já se haviam dado conta disso mesmo, pelo que não o aborreciam muito. A escola também não era uma grande ajuda. Sempre fora muito distraído e gostara pouco estudar para além do ambiente conflituoso da casa não lho permitir. Mal sabia ler e escrever, embora dominasse perfeitamente as contas simples. Como a folha continuasse a debater-se violentamente contra as suas pernas, o rapaz apanhou-a. Acariciou a folha com os seus tristes olhos castanhos. A fúria da natureza não se comparava minimamente com a guerra que se desenrolava no seu íntimo. O sofrimento estivera sempre presente na sua vida, acompanhando-o desde criança. A raiva desencadeava a revolta, que o levava a rebelar-se contra as imensas situações injustas que experimentara desde sempre e que o faziam fugir e bater com a porta, procurando ambientes mais leves, proporcionados pela vasta natureza que circundava o bairro onde vivia. Dava longos passeios, alheio aos olhares desconfiados, aos passos apressados e à multidão que o contornava, sem reparar nele, e contra a qual chocava ocasionalmente. Ansiava por locais isolados, longe da presença humana. O seu local favorito era a praia. Era ali que atirava a revolta à fúria das ondas, gritando a sua angústia e desespero, e, já mais calmo, procurava a paz que o terreno baldio, ainda despejado de cimento e betão, lhe proporcionava. No seu coração, habitualmente doce, a serenidade regressava algum tempo depois. Não tinha um local que pudesse considerar seu, uma vez que em nenhum encontrava um ambiente favorável, que lhe pudesse dar a segurança, a paz e o carinho que nunca conhecera, e sempre desejara. Estava saturado de injustas palavras duras, tentando inculcar na sua frágil alma defeitos que ele não possuía e ignorando os sentimentos que ele mais necessitava. O apoio encontrara-o sempre na figura esguia e encarquilhada do velho pescador que havia sucumbido à avançada idade. Nada mais lhe restava. Sentia-se desamparado. Não sabia como havia de continuar sem o seu carinho, o seu apoio e a sua amizade. Recordava ainda aquelas tardes quentes de verão, quando o encontrava debaixo da velha árvore, de cachimbo na boca, olhando esforçadamente o jornal amachucado, onde tentava progredir na leitura, juntando esforçadamente as sílabas, e tentando descortinar a manhosa palavra, que resistia à incursão do seu leitor. Ele sempre lhe realçara a necessidade de aprender a ler e a escrever, que encontrara na leitura ocasional do jornal, sempre atrasado no tempo, que lhe levava o filho que trabalhava num dos hotéis da cidade, um refúgio para as suas horas vazias. O ancião sempre realçara a importância da leitura, mesmo quando estava triste ou revoltado com a vida, sempre encontrando nela o refúgio necessário e querido. Ela conduzira-o, irresistivelmente, para mundos desconhecidos e belos, despertando nele sentimentos e ideias que, até ali, ele ignorara. Durante as horas que passava a ler, ele esquecia-se dos seus problemas. O rapaz olhara-o de soslaio, lançando depois um olhar avaliador àquelas folhas desconjuntadas de letra miudinha, que carregavam o mundo dentro delas. Como seria isso possível se os jornais traziam apenas a dor e os problemas do mundo ou falavam de assuntos tão específicos, com umas palavras tão difíceis e desconhecidas que o faziam desistir logo de seguida? Não, aquela não era leitura para ele. Partilhou o raciocínio com o velho ancião, em cujas mãos as largas folhas se agitavam como bandeiras ao vento, devido ao tremor do seu corpo. O velhote concordou com ele. Mas mostrou-lhe uma secção diferente das outras, que ele descobrira, havia pouco tempo, naquele jornal, onde todas as semanas, vinha uma estória publicada, que ele lia sofregamente e cuja continuação ele esperava todas as semanas. Mostrou-lhe o nome do jornal, que se destacava pela largura, o tamanho e a cor das suas letras, contrastando violentamente com as outras. O rapaz olhou desinteressadamente, registando o nome apenas na sua memória visual. Amava aquele ansião que descobrira um dia na praia, estando ele alvoroçado e acabrunhado como lhe sucedia frequentemente. O velhote, observador sensível, esperara o momento oportuno para entabular conversa. Começara com uma observação inteligente sobre o mar, que o fizera desviar a atenção das águas. Sentira-se atraído por aquela personagem que irradiava paz e calor. Entre conversas e ajudas, a amizade fora-se consolidando com o tempo. Desenvolvera-se entre eles uma confiança e um carinho como só duas almas isoladas e autênticas conseguem verdadeiramente atingir. Cada um trouxera algo ao outro. Agora, tudo terminara. Chegara um dia a sua casa a tempo de o ver sair, de maca, coberto pelo seu pijama de riscas azuis, a mão deformada pelo tempo, caída para fora do improvisado leito, parecia acenar num derradeiro adeus, indiferente ao rosto inexpressivo e ausente. Os adultos mal haviam dado conta do seu choque, dada a pressa com que agiam. Fora a última vez que o vira. A partir daí, a sua alma faminta, alimentava-se da recordação desses dias passados juntos, onde aprendera a aliviar a sua alma carregada.

  O rapaz voltou a folha que se agitava violentamente na sua mão. Procurou uma posição mais cómoda, onde o vento não lhe tentasse arrancar o jornal. Após várias tentativas, levantou-se e procurou outro local mais abrigado. Encontrou o esperado abrigo na curva da colina. Olhou com atenção a página. A sua memória visual ajudou-o a reconhecer o nome do periódico, só que em tamanho mais pequeno, sem qualquer destaque. A sua atenção redobrou quando se sentiu familiarizado com ele. Voltou a página. O seu olhar deparou com a secção preferida do querido ancião. O rapaz sentiu as lágrimas turvarem-lhe a vista. Sentiu uma onda de ternura percorrer a sua alma. Sentiu o aconchego na presença daquela folha que uma mão invisível transportara até ele. Começou a ler, esforçando-se à semelhança do seu velho amigo, por ligar as sílabas, voltando ao início da frase para poder ler já mais facilmente e descobrir o seu sentido. A magia das palavras encheu-lhe a alma. Sentiu-se transportado para um mundo mágico, onde a fantasia o fazia esquecer a sua rude vida diária. Esqueceu-se do tempo, mas para quem não tem para onde ir, o tempo não fazia qualquer diferença. A estória era curta o que o deixou desconcertado. Como descobriria agora o fim? Olhou para a data, mas não lhe valeu de muito. Ele não sabia o dia do mês. Teria de procurar ajuda. Levantou-se e caminhou contra o vento, na direcção do único restaurante onde encontrava jornais amontoados. Assim que entrou, dirigiu-se ao balcão perguntando qual era o dia do mês em que estavam. O homem, surpreendido, mostrou-lhe o mês e o dia no calendário enorme que cobria a parede de azulejo branco. O rapaz olhou atentamente e comparou com a do jornal. Pelas suas contas, aquele jornal era dessa semana. Alguém o deve ter lido e colocado nos recipientes de ferro, colados ao chão, de onde o vento o arrancara. Mostrou-o ao simpático senhor, que confirmou as suas suspeitas. Onde podia arranjar outro mais antigo? O senhor indicou-lhe um volumoso monte de jornais que jazia a um canto. Ao ver a sua indecisão, o senhor estimulou-o com um simpático “Vai lá!”, sorrindo-lhe curioso. O adolescente dirigiu-se a ele e começou afastá-los, até chegar àquele cuja data antecipava o exemplar que tinha na mão. Procurou a secção e começou a ler. Pelo desenho das letras, adivinhava-se que o título era o mesmo, e com um bocado de sorte seria o início da narrativa que tanto apreciara. Começou a juntar as sílabas naquele esforço já familiar, procurando sofregamente aquele ambiente de que já sentia saudades. A leitura avançava com a mesma dificuldade de sempre, fazendo-o regressar ao início de cada frase para saborear o sentido. Às vezes, demorava-se mais numa expressão ou noutra procurando deslindar o que o autor quereria dizer com ela. E como havia expressões bonitas! O rapaz deixava-se impregnar por aquele mundo fantástico, agradecendo, do fundo do coração, ao seu amigo que lhe ensinara o valor da leitura. Agora, só tinha de acompanhar a narrativa até ao final, ansiando pelo seu fim.

  O dono do bar-restaurante olhava-o com redobrada curiosidade. Oriundo de uma família com dificuldades financeiras e ambiente hostil, ele havia lutado muito para chegar até ali. Bom apreciador da natureza humana, ele gostara logo daquele jovem. Enquanto limpava os copos e os conduzia ao seu lugar, em cima de uma prateleira de madeira, com a boca virada para baixo, ele acompanhava o interesse do rapaz. A delicadeza com que tocara nos jornais, já gastos de tanta mão indiferente, mostrara-lhe que se tratava de um rapaz especial. Deixou-o ficar, não se importando com os clientes que entravam e saíam indicando-o com o queixo ou com a cabeça. O dono respondia simplesmente que se tratava de um jovem amigo. A partir dali, habituar-se-iam a vê-lo com regularidade, sempre de nariz enfiado nas letras escuras do jornal. O dono convidara-o a ler o jornal, que lhe oferecia, passada a semana. Se havia de ir para o lixo, ficava para ele, comentara alegremente. Sempre seria mais útil, confidenciara-lhe, e adivinhando que ele não teria local para o ler, convidou-o a visitá-lo todas as semanas. Aquele já ele poderia levar. Era uma oferta., sentenciou dirigindo-se aos jornais impecavelmente arrumados, e escolhendo aquele que ele estivera a ler. Com este já deveria ter a estória quase completa, não? Passou a vista pela secção visitada e depois por aquela que estava na mão do rapaz, concluindo que ele estava com sorte. Piscou-lhe o olho em sinal de cumplicidade. Podes vir quando quiseres. O rapaz agradeceu e arrastou os pés até casa, com os dois exemplares na mão. Não sabia bem porquê mas não sentia já tanta relutância em voltar a casa. Nem o seu quarto lhe parecia aquele local vazio só preenchido pelos gritos de raiva e a pancada do pai. Ele tinha algo que ninguém lhe poderia alguma vez tirar – as suas recordações e o mundo mágico imaginário da leitura – que lhe preenchiam a alma. Tal dissera o seu grande amigo, também a voz da leitura era amiga e ensinava. E havia que ter sempre atenção a isso. Como é que ele saberia? Ora, lendo a mensagem que cada estória contém e sentindo-a no seu coração. Eram essas mensagens que se traduziriam no homem que ele um dia se tornaria.

 

 

Fátima Nascimento 26/12/2008

 

publicado por fatimanascimento às 13:24
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