Sábado, 25 de Setembro de 2010

Inês e a bicicleta

Há muito tempo que Inês queria uma bicicleta. Pedia-a frequentemente à mãe. Como não tivesse muito dinheiro, a mãe dizia-lhe que, quando tivesse  menos despesas,  lhe compraria a bicicleta. Ficou entusiasmada. Falava da bicicleta que iria ter a toda a gente: aos avós, aos irmãos, aos amigos, às visitas, aos colegas da escola…

Mas os dias foram passando e a tão ansiada bicicleta não chegava! Os amiguitos da casa ao lado passavam as tardes a andar de bicicleta e Inês não podia acompanhá-los porque não sabia andar de bicicleta e porque não tinha uma. O pai dos meninos, como andava a ensinar o filho mais novo, ensinou-a também. Como a vontade de aprender era tanta, a menina, em apenas dois ou três dias, já se equilibrava em cima do velocípede! A sua satisfação aumentava de dia para dia e também as suas habilidades! Só a tão desejada bicicleta não chegava. Perguntava vezes sem conta à mãe quando é que teria a bicicleta e como de morasse muito, resignou-se a uma ideia – partilharia a bicicleta dos vizinhos!

Um dia chegou a casa muito entusiasmada. Alguém lhe oferecera uma bicicleta!

A mãe que conseguira juntar um dinheiro para a comprar, parou, confusa. Viu entrar, pelo portão, uma bicicleta na qual se poderia montar! O entusiasmo da pequena por ter realizado finalmente o seu sonho juntava-se uma certa apreensão: era tão grande que tinha medo de se desequilibrar e cair! Surgiu a ideia de baixar o selim, para que pudesse, mais facilmente, chegar aos pedais. Grande decepção! A pequena já não sabia o que haveria de pensar! Ao ver a decepção da filha mais nova, a mãe decidiu que, custasse o que custasse, lhe iria comprar a bicicleta no mês seguinte.

Para evitar sofrer com a situação, esqueceu-se da sua e concentrou-se nas brincadeiras e nos passeios partilhados na bicicleta emprestada dos vizinhos. Como o pai dos vizinhos do lado tinha comprado uma nova para o filho mais novo – tinha feito o mesmo há uns meses atrás, à filha mais velha – sobrava uma que era emprestada à Inês.

A mãe não sabia! Tinha tomado a decisão de realizar a sua ideia depois de ter visto a bicicleta oferecida! Uma noite, disse subitamente À filha mais nova:

- Inês, amanhã, a mãe vai pedir à mana e ao Teo para te comprarem a bicicleta. E tu vais com eles para escolheres.

A pequena, desta vez mais cautelosa, não reagiu com o entusiasmo anterior. Tinha medo da desilusão. Ficou parada a olhar para a mãe na dúvida.

- Vais mesmo comprar-me a bicicleta? – perguntou como se não tivesse compreendido bem o que a mãe acabara de dizer.

- Sim, Inês, vou comprar-te a bicicleta! – sublinhou.

- Quando?

- Quando vieres da escola!

A pequena, embora entusiasmada, continuava a reagir com cautela. Finalmente, desprendeu a sua alegria que, até ali, tinha refreado a custo.

- Que bom! Vou ter, finalmente, a minha bicicleta! – gritou alegremente acrescentando depois – e aquela que está na garagem, mãe?

- Fica para mim – esclareceu a mãe – Quando já estiver boa, vamos andar as duas de bicicleta!

Inês abraçou a mãe.

- És a melhor mãe do mundo! – gritou carinhosamente.

No dia seguinte, assim que acordou, os seus pensamentos voaram para aquele que seria o ponto alto do dia – a compra da bicicleta.

- É hoje que vamos comprar a minha bicicleta! – exclamou

- Sim, é. – retorquiu a mãe – Mas só à tarde quando regressares da escola e depois do Teo sair do emprego.

Inês foi muito feliz para a escola. Esteve inusitadamente alegre e comunicou a todos o motivo da sua felicidade: ia ter uma bicicleta do seu tamanho!

Chegada a tarde, o entusiasmo de Inês ia aumentando. Terminou os trabalhos de casa e brincou até à chegada da irmã que só chegava às oito horas da noite. Como estudava num liceu noutra cidade, e ia e voltava de comboio, partia sempre muito cedo e chegava tarde. Era a última a chegar a casa!

À medida que se aproximavam as oito horas, a impaciência aumentava assim a expectativa. Mas não dizia nada. Limitava-se a olhar para os desenhos-animados da televisão e a esperar. Quando a porta de entrada se abriu e uma voz alegre e já prevenida gritou “Cheguei!”, o entusiasmo foi enorme. Como Teo já tivesse chegado, rumaram os três para a grande superfície mais próxima no sentido de comprar a tão ambicionada bicicleta!

Chegaram uma hora depois com a pequena aos gritos lançando à brisa fria da noite que já comprara a sua bicicleta! E chegava aos pedais!

- Oh, mãe, assim que encarei com a bicicleta, percebi que era esta a ideal para ela! – comentava satisfeita a irmã mais velha de Inês.

A mãe agradeceu ao Téo que tinha de se despachar, pois a mãe estava à sua espera para jantar!

E, agora, a menina percorre o bairro todo encavalitada na sua pequena bicicleta, vivendo aventuras nos ares rasgados da sua velocidade. Na cabeça, o capacete próprio que pertenceu ao irmão mais velho!

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Terça-feira, 14 de Setembro de 2010

Inês e o banho

Inês só tem sete anos, mas já toma banho sozinha. Foi uma decisão dela. A mãe compreendeu e incentivou essa decisão. Havia uma explicação para isso. A banheira tem duas portas de um material plástico branco opaco o que torna o espaço da banheira, durante o gelado Inverno, mais quentinho. E desde que entrava na banheira até que saía, Inês tremia de frio, variando entre o tom de pele normal e o tom arroxeado. E toda a família gozava desse privilégio, menos ela, porque estava dependente das mãos que, do lado de fora, a esfregavam. Assim, durante todo o banho a pequena criatura tremia o que a fazia detestar o banho. A pequena que, na praia, não abandonava a água, detestava aqueles momentos incómodos, frios e desconfortáveis. Era muito desagradável! Só estava bem com a torneira da água quente aberta. O vapor de água matinha o ambiente tolerável. E era uma tormenta, sempre que tinha de fechar a torneira. O frio envolvia-a como uma capa fria. Todo o seu corpo tremia! Nem quase se conseguia mexer! Enquanto era pequenina, limitava-se a tremer. À medida que foi crescendo, foi-se queixando baixinho do frio. E esse momento começava logo no momento em que começava a despir a roupa. O seu rosto fechava-se antecipando o medo do frio que a iria agarrar o seu corpo com as suas desagradáveis garras frias. Começava a mostrar indícios de ansiedade num choro contrariado. O que poderia ser um prazer, era, para ela, um autêntico suplício. Detestava as horas do banho! A mãe explicou-lhe que, deixando a porta de correr, que protegia a banheira dos exteriores olhares indiscretos e das incomodativas mãos frias que a esfregavam à pressa para evitar o prolongamento aqueles momentos torturosos, aberta tornava o banho mais frio. Isto deu-lhe que pensar. Por um lado, gostava da atenção que lhe dispensava a família na hora do banho, por outro, aquela temperatura baixa, tornava tudo desagradável. Para a consolar, a mãe deixava-a ficar, durante uns segundos, com o chuveiro da água quente ligado enquanto ia buscar o toalhão enorme onde a enrolava. Eram os momentos mais agradáveis daquele acto de higiene tão agradável e, ao mesmo tempo, tão desagradável! Como a electricidade está muito cara, evitava-se ligar os aparelhos de aquecimento para não aumentar a factura trimestral, que era sempre elevada, e evitar o golpe final de ter de indemnizar a companhia de electricidade por descuidos, durante o Inverno. Uma vez a mãe vira-se obrigada a repartir a factura por três meses, tal era a quantia! Descobriu-se que o irmão, muito friorento, acabava por dormir com termoventilador ligado no quarto dele! Inês nunca vira a mãe tão zangada. Toda a família a fazer sacrifícios e ele que não queria saber de nada! Não podia ser! As mulheres da casa não ligavam qualquer aparelho d aquecimento suportando corajosamente o frio. A partir daquele momento, ele começou a ter mais cuidado!

Uma noite, enquanto a mãe a vestia, depois de a encorajar, a tirar a toalha quentinha que a cobria toda à excepção da ponta do nariz e dos olhos, afirmando que, assim que vestisse a camisola interior, se sentiria quentinha, aquiesceu e trocou o pesado tecido pela camisola interior grossa de algodão branca. Depois de enfiar o corpo no pijama e no robe e os pés nas meias grossas, sentiu-se mais animada. Só faltava o cabelo! A mãe agarrou no secador de cabelo e na escova e logo o calor consolou a pequena alma. Após uns instantes, de cabelo seco e solto, Inês mirava-se no espelho da cómoda com satisfação: cheirava bem e estava muito bonita.

Voltou-se subitamente para a mãe que arrumava todos os objectos utilizados:

- Mãe, a partir de agora tomo banho sozinha! – declarou contente com a decisão tomada.

- Muito bem! – concordou a mãe que já lhe ensinara tudo a respeito dos banhos – Assim terás menos frio!

E deu-lhe um abraço enquanto exclamava orgulhosa e baixinho:

- A minha menina está a ficar crescida!

E assim foi. A partir daquela noite, Inês passou a tratar de si e as horas frias e desagradáveis tornaram-se muito felizes. Molhava-se, lavava a cabeça com champô, tirava a espuma com água, e colocava o amaciador. Lavava o corpo com gel e, depois, retirava a espuma com água e, de seguida, o amaciador que lhe empastava os longos cabelos castanhos. Sorriu satisfeita à toalha que esperava a um canto seguro da banheira. Enrolou-se nela, limpou-se e saiu cautelosamente evitando tropeçar. Daí a uns minutos, estava pronta a secar o cabelo. Para grande surpresa da mãe, escolheu secar o cabelo também. Afinal, aquela estava doente e teria de se desembaraçar. Entrou minutos depois no quarto da mãe: estava linda! Olhou-se orgulhosamente no espelho. Conseguira! Livrara-se dos banhos gelados e da impaciência da irmã mais velha que, chegada a casa, se encarregava, muitas vezes, de lhe dar banho enquanto a mãe preparava o jantar! E passou a gostar da hora do banho de tal maneira que muitas vezes se esquecia de fechar a torneira!

- Inês, estás a gastar muita água. Não pode ser! –repreendia-a docemente a mãe.

E contou-lhe a história da água que estava a ficar doente com a sujidade e que não tinha outra para a substituir uma vez que cada vez, com a subida da temperatura do planeta, choveria menos.

Inês escutou a história com os olhos presos nos da mãe.

- Então não posso deixar a torneira muito tempo aberta, para poder poupar a água!

A mãe sorriu:

- É isso mesmo! – exclamou a mãe sorrindo – És uma menina muito inteligente!

E quase sempre cumpriu!

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Domingo, 18 de Abril de 2010

Inês e o Pequeno-almoço

Inês levantou-se cedo. Fim-de-semana. Saltou da cama, calçou as pantufas e vestiu o robe ainda ensonada. Olhou para o rádio-despertador. Marcava sete horas! Acordou a voz dirigindo-se à cara ensonada da mãe e murmurando:

- Vou fazer-te o pequeno-almoço!

Desceu as escadas em silêncio. À sua volta a casa ainda dormitava sob a luz fraca e crua da madrugada. O dia desenhava-se chuvoso e cinzento igual aos da semana que findara. Da cozinha chegavam os ruídos das loiças e dos talheres que se mexiam uns contra os outros sob a autoridade da pequena mão.

A mãe não tinha muita fome. Como estava praticamente reduzida ao espaço da cama, de onde pouco se mexia, o apetite era nulo. Mas como a oferta tinha sido tão sincera e tão simpática e partia de uma pequenina de apenas sete anos, a mãe não teve coragem de a desencorajar. Sentou-se cautelosamente na cama e procurou as caixas dos comprimidos que estavam empilhadas do lado oposto ao da cama. Tinha de tomar três espaçadamente assim que acordava. O primeiro, um protector gástrico, outro para a alergia e outro para combater as dores que a imobilizavam mas que não resolviam o seu problema de saúde. Sentia-se desanimada, Mas procurava guardar esse desânimo para si para poupar as pessoas que viviam com ela. Sobretudo evitava assustar a pequenita. Era engraçado vê-la, à noite, no papel de mãe em ponto pequeno aconchegando os edredões e o lençol ao rosto sorridente da mãe ao mesmo tempo que lhe dava beijinhos alternadamente na face e na ponta do nariz!

Voltou a deitar-se com cuidado esperando o regresso da pequena aventureira que se afadigava na cozinha dividindo-se entre o microondas e a torradeira. A mãe seguia atentamente cada ruído para ter a certeza de que tudo corria bem e ela não se magoava. Seguiu-se um silêncio só quebrado pela voz da pequena que enumerava mentalmente todos os objectos necessários de forma a não se esquecer de nada!

Daí a pouco, viu-a subir atentamente as escadas evitando algum possível acidente. Olhava para o tabuleiro onde se equilibravam precariamente uma chávena e um prato ao mesmo tempo que tentava recordar-se dos degraus da escada onde colocava ora um pé ora outro. Finda a difícil e vagarosa subida entrou entusiasmada no quarto dizendo na sua clara voz:

- As torradas queimaram-se um bocadinho mas eu tirei o queimado com uma faca e ficaram boas! – explicou.

A mãe não pôde deixar de sorrir à explicação avançada enquanto se levantava com dificuldade e se encostava às almofadas da cabeceira. A perna foi devastada por uma espada de dor. O seu rosto contraiu-se. Não conseguiria aguentar-se muito tempo naquela posição. Olhou para o tabuleiro: uma chávena com leite morno, duas torradas de carcaça e um guardanapo em cima do qual descansava uma colher de sobremesa!

A mãe despachou-se a comer para evitar a dor que ameaçava tornar-se mais forte! Olhou o pão que não tinha vestígios das desagradáveis queimaduras negras. Comeu as duas torradas empurrando o pão com o leite sempre tentando encontrar uma posição que diminuísse consideravelmente a dor que se tornava cada vez mais insuportável. Acabada a refeição, colocou o tabuleiro ao seu lado gemendo baixinho de dor. Agradeceu alegremente à filha que pegava no tabuleiro e o colocava num sítio seguro muito contente com a sua iniciativa.

- E tu, já comeste?

Inês acenou afirmativamente.

- E o que é que a minha menina comeu?

- Ora, o mesmo que tu! – respondeu com vivacidade encarando a mãe – Leite com chocolate e torradas!

Subitamente uma voz ensonada, vinda do quarto do irmão da menina, elevou-se no ar:

- Inês, traz-me também o pequeno-almoço à cama!

- E a mim também! – pediu uma risonha voz ensonada do quarto oposto.

Ouviu-se a voz da pequena indignada:

- Olha, vão vocês preparar! Vocês não estão doentes. A mãe é que está!

Voltou-se para a mãe à procura de apoio. Esta piscou-lhe um olho risonho e cúmplice.

- Estão a brincar contigo! – sussurrou encostando o indicador aos lábios.

Sentou-se depois junto da mãe, evidenciando um ar importante que na realidade não sentia e começou a ver os desenhos animados deitando uma olhadela de vez em quando à mãe que, ao seu lado, abria um livro e começava a ler para passar o tempo sem desesperar!

O tabuleiro levá-lo-ia mais tarde quando descessem todos para almoçar.

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Sexta-feira, 16 de Abril de 2010

Mãe, gostas de mim?

Inês era pequenina quando colocou esta questão. Teria três anos no máximo. Talvez nem tanto. Foi a primeira de algumas que viria a fazer posteriormente. Tendo sido uma querida e grande surpresa, a mãe estranhou a questão. É a mais nova da família, tem onze anos de diferença do irmão e oito da irmã. Todos sempre lhe haviam dispensado muita atenção e carinho. Ainda assim, ela colava-se à mãe durante os momentos de pausa e repetia a questão como se quisesse assegurar-se da veracidade dos sentimentos ou porque tivesse necessidade de ouvir várias vezes da boca da mãe ou porque necessitasse de mimo. A mãe abraçava-a, beijava-lhe as madeixas escuras que lhe chegavam aos ombros. Mas parecia não chegar. Periodicamente, lá vinha a mesma questão nascida não se sabia bem do quê.

Uma noite, estavam as duas recostadas na cama da mãe, quando Inês voltou a questionar a mãe sobre os seus sentimentos por ela. A mãe percebeu que era sério. Inês tinha de perceber o quanto era importante na sua família, não sabia bem porquê. Sempre fora a pequenina, a menina de todos. Havia sido criada pela mãe e os irmãos com a ajuda preciosa dos avós.

A mãe fez uma pequena incursão no passado. Não fora fácil. Ficara grávida na altura exacta em que se estava a separar. Os enganos haviam sido a parte que a marcara mais. O muro emocional desmoronara-se. Sentira-se impotente perante o novo rumo da sua vida. Tinha dois filhos e vinha outro a caminho. Como seria a vida dali para a frente? Conseguiria enfrentar sozinha o mundo e tudo o que de difícil ele tem? Duvidara de si. Não duvidara nunca da vida que crescia dentro de si. Foi ao médico que confirmou a existência da vida dentro de si. Dada a idade avançada deveria fazer um exame para saber se estava tudo bem com o bebé. Não quis. Não conseguia aguentar outra perda. Assumiria o pequeno ser tal como viesse ao mundo. Passaram-lhe pelo pensamento algumas ideias aparentemente assustadoras que acabara sempre por suavizar. O amor suaviza tudo. No amor não há medo!

Nesse momento, a mãe decidiu que arranjaria uma história que a levasse a ter noção do amor da família por aquele pequeno ser. Pensou um pouco, enquanto abraçava carinhosamente a sua pequenina. De repente, lembrou-se de uma expressão do seu pai, já velhote, que parecia perdido num país longínquo, enquanto repetia para si em voz alta “Esta menina não tem culpa de cá estar. Esta é que não tem mesmo culpa de cá estar!” Esta fora uma expressão que marcara profundamente a mãe de Inês. Apercebera-se, sem esforço, da importância daquela menina. Surgira por acaso. Não fora planeada, contudo a mãe nunca duvidara em acolher aquela milagrosa prenda da vida. Então, começou a falar baixinho, enquanto a apertava contra si:

- Sabes gosto de ti desde que tinhas este tamanhinho assim. – e juntava o dedo polegar ao dedo indicador para a fazer entender.

Inês observou-a encantada. Juntou por sua vez os dois dedos da sua pequena mão imitando o gesto da mão.

- Não – observou – tu gostas de mim desde que era deste tamanhinho. E estreitou ainda mais o espaço entre os dedos.

- Nem mais! – concordou a mãe – Desde que soubemos da gravidez, isto é, que tu estavas dentro da minha barriga todos nós nos apaixonámos pela ideia – eu, a mana e o mano. Sabes o que fazia a mana? Punha-se debaixo do lençol e cantava baixinho junto da barriga para que tu conhecesses a sua voz. Outras vezes, contava-te histórias sobre nós. Adorou a ideia de seres uma menina!

- O Bruno não. Queria um menino para o ensinar a jogar à bola! – sentenciou a pequena.

- É verdade. O Bruno não sabia muito bem como brincar com uma menina. Mas, depois, habituou-se de tal forma à ideia, que passou a adorá-la. Observava as meninas que encontrava e passou a achar-lhes muita piada. Mas há mais… - acrescentou num tom misterioso. Inês aconchegou-se mais à mãe – Sempre que tinha de sair para tratar de algum assunto e não demorava muito tempo, os manos ficavam contigo e tomavam conta de ti. Uma vez, demorei-me mais um pouco e cheguei a casa preocupada. Fiquei admirada ao observar a mana a mudar-te a fralda e a limpar-te o rabito, enquanto o teu irmão, apavorado, tinha medo que ela fizesse alguma coisa mal que te pudesse prejudicar. Quando cresceste e começaste a andar, andavam sempre atrás de ti com medo que caísses. Um dia, quando fomos a um restaurante, tu quiseste experimentar uns baloiços que lá havia. Era uma espécie de túnel com algumas escadas e um escorrega. Tu desembaraçavas-te bem. Ainda assim os manos, enquanto comiam, observam-te com medo que os outros meninos te pudessem magoar, empurrar. Aconteceu isso uma vez e os teus irmãos levantaram-se imediatamente da mesa para irem pôr ordem no parque. Estavam sempre atentos não fosse algum deles voltar a empurrar-te. Como eras muito meiga e não te sabias defender, faziam isso por ti.

A partir dessa altura, a questão muitas vezes repetida, fora substituída pela brincadeira dos dedos. Inês aprendera que desde muito cedo, desde que não passava de um pequeno ponto na barriga da mãe, fora, desde logo, desejada e muito amada, apesar das contrariedades da vida por que passara. Desde então, parecia mais segura de si e nunca, nunca mais voltara a questionar a mãe sobre tal assunto.

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Domingo, 11 de Abril de 2010

Inês e a tabuada

Segunda-feira. A tarde quente acompanha o sol na sua viagem circular. Ao contrário das outras sempre cinzentas, húmidas e escuras, este dia trouxe um sabor prematuro a Primavera. Na rua calma, esvoaçam pequenos pássaros numa dança exótica. Os eucaliptos dançam ao sabor da brisa e cantam louvores ao astro destapado pelas implacáveis nuvens. É um dia especial. As paredes, de onde escorrem desagradáveis tintas azuis, abrem os braços ao ar queimado pelos raios solares. Da casa ao lado, o silêncio marca a ausência de seres mergulhados em tarefas distantes.

São duas horas. A campainha da escola marca o fim do matinal período escolar. Inês corre para o enorme pátio em busca do largo rosto engelhado da avó materna. Encontra-o do lado de fora das grades junto ao rosto fiel e submisso do avô que pergunta constantemente quem é que anda naquela escola. A esta pergunta a avó vai respondendo com alguma impaciência. A doença faz esquecer o avô. A sua memória mais recente não retém informação, funciona como um saco vazio. A resposta entra no cérebro para logo fugir por um qualquer sítio mágico.

Inês traz às costas a mochila com o material escolar. É pesada mas não se importa. Trocou-a há dias pela sua pasta de rodinhas da qual já está saturada. Imita os irmãos ou as colegas ou talvez esteja farta de arrastar atrás de si um peso que lhe limita os movimentos. É pesada mas não se importa. Prefere assim. E não há argumento que a possa demover.

Apanharam o autocarro que os levará até metade do trajecto que leva até casa. O autocarro não está muito cheio, mas os poucos lugares sentados estão, quase todos, ocupados. O único banco livre é ocupado pelo avô que tem muita dificuldade em se equilibrar nos saltos e curvas desenhados pelo autocarro. Inês observa o ambiente à sua volta. A maioria das pessoas que viaja no pequeno meio de transporte é idosa. Algumas admiram a paisagem como se a avistassem pela primeira vez ou como se tivesse sido atacada por uma alteração muito curiosa ou sensacional. Duas idosas não param de tagarelar referindo-se a eventos e pessoas desconhecidas. Inês, de pé, junto da avó, tenta equilibrar-se o melhor que pode. Subitamente, sente os olhos das duas conversadoras poisarem na sua pequena estatura séria. Desconfiou. Não gosta de pessoas que falam de outras. Iriam referir-se agora a si? Desviou os olhos timidamente. Uma voz alta sobrepôs-se ao ruído do motor do transporte.

- A menina tem uma mochila muito pesada às costas. Só faz mal à coluna.

A outra concordou, tendo ido logo buscar uma quantidade de desgraças de que tivera conhecimento durante toda a sua vida.

Inês detestou as duas senhoras. O que é que elas tinham a ver consigo?

Desviou a cara para a face da avó. Em cheio! Era ainda pequena mas já percebia que certas afirmações feriam a dignidade da avó. Iria arranjar discussão por aquilo. Mergulhou o olhar duro nas duas impertinentes senhoras.

Saíram na primeira paragem aguardando calmamente a chegada do outro que os levaria até ao fim da linha. Não demorou muito. A avó, num gesto brusco, puxou a pesada pasta das costas da neta e colocou-a bruscamente no chão. Uma ameaça de discussão perpassou o ar impregnado de água. Com a visão nublada, Inês sabia que aquela era a reacção consequente da observação realizada pelas senhoras. Não haviam dito nada de novo. Toda a gente sabe que os pesos fazem mal ao esqueleto humano e que as pastas dos meninos são muito pesadas, fora o tom utilizado que ferira os sentimentos da avó. Ficou quieta e determinada. Continuaria a carregar o pesado saco até que lhe apetecesse. Todos faziam o mesmo. Não havia volta a dar ao assunto. A não ser que deixasse algum material em casa… Era parvoíce. Resolveu pensar noutro assunto. Estava ansiosa por chegar a casa e fugir daquela irritante chuva que os mergulhava a todos numa disposição terrível. E em casa estava a mãe que a ajudaria nos trabalhos de casa, logo que acabasse de almoçar. Era bom ter a mãe em casa, apesar de estar doente. Inês sentia-se impaciente.

O autocarro parou afastado do passeio evitando molhar as pessoas que rodeavam cuidadosamente o inesperado lago artificial, comodamente alojado no alcatrão.

O calor desprendido do veículo reconfortou-os. Este estava mais vazio e havia espaço para se sentarem todos. Inês ocupou um lugar junto do vidro enquanto os avós se sentavam do outro lado do corredor, na mesma fila. Agora era um instantinho!

Na nacional, as pessoas afastavam-se cuidadosamente para a berma da estrada permitindo aos transportes cruzarem-se facilmente, sem correrem o risco de serem apanhadas.

A casa da Inês fica fora do centro da localidade onde vive. Só há pouco tempo a Câmara disponibilizara transporte capaz de levar as pessoas dos arredores até à cidade. Acabara-se o isolamento. Da paragem até ao seu acolhedor lar, teriam de caminhar uns escassos trezentos metros sobre um passeio largo.

Numa corrida ligeira, protegida pela sua longa capa vermelha, a menina depressa tomou a dianteira para abrir o portão e a porta de entrada.

Descalçou as botas e subiu ao primeiro andar para abraçar a mãe e contar-lhe as novidades, enquanto os avós se instalavam no piso inferior arrumando peças de mercearia trazida do carrinho das compras.

Vestiu o fato de treino e voltou a calçar as pantufas. Pendurou a roupa na cadeira e sentou-se na cama ao lado da mãe.

Retirou o caderno da pasta e o estojo. Trazia trabalhos de casa de Matemática. Está a aprender as tabuadas do dois, do três, do quatro e do cinco. As contas com transporte são também um grave problema para si. Como é muito distraída, esquece-se sempre dos números que vão de trás na adição e na subtracção. A mãe está a ajudá-la. Divertem-se muito juntas. Se se enganam riem-se muito e voltam a concentrar-se na matéria estudada.

O Avô, a certa altura, incentivado pela avó, juntou-se-lhes. Já tinham ultrapassado a fase das contas, estavam agora a tentar memorizar a tabuada. O avô sentou-se na cadeira disponível aos pés da cama, virado para elas. Estava muito atento ao que diziam. Subitamente, a mãe lembrou-se de o integrar na brincadeira afastando-o do seu mutismo. E começou a brincadeira da tabuada. Quando Inês não respondia, o avô, com a rapidez de uma calculadora, respondia correctamente a todas as questões. Inês, mais atrasada virava-se admirada para o seu idoso avô. Espertas, as duas experimentaram toda a tabuada e… ele acertou em todas. Se Inês o tentava enganar, na brincadeira, ou se enganava, ele respondia prontamente que era mentira corrigindo de seguida o erro.

Passados uns instantes, a avó, alertada pelo alarido dos risos e das palmas batidas ao sucesso do idoso, juntou-se-lhes admirada com a habilidade do marido. A doença ainda não matara a sua memória mais longínqua. Pelo menos não atingira ainda a escolar.

- É bom saber a tabuada e responder assim depressa – observou Inês admirada.

- Para tal – respondeu a mãe – terás de a repetir muitas vezes até a saberes.

Inês ficou pensativa. Se fosse sempre como naquela tarde, até que seria divertido aprender a tabuada. As contas eram divertidas!

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Quarta-feira, 7 de Abril de 2010

Inês e a brincadeira

Quando Inês chegava a casa, depois da escola, almoçava e fazia os trabalhos de casa. Quando acabava os deveres, entregava-se à sua adorada brincadeira. Sempre com os brinquedos espalhados pela casa e na varanda, não quer que ninguém mexa neles. Sempre que vive determinada estória imaginada, muitas vezes, não consegue acabar as aventuras a tempo das refeições e até à noite se despede com saudades deixando tudo pronto para retomar a acção inacabada. As suas brincadeiras são vividas com intensidade emocional. Muitas vezes, na sua voz transparece tanta emoção que a mãe e os irmãos perguntam do piso inferior se está tudo bem, ela, surpreendida, responde que sim. Seja na varanda ou dentro de casa, as brincadeiras são sempre vividas da mesma forma. A sua voz repercute-se pelo espaço em redor enchendo os ouvidos dos curiosos. Sozinha enche um teatro! É um regalo vê-la brincar. Todos os seus bonecos, mesmo os danificados têm um papel importante nas infindáveis aventuras.

Mas as brincadeiras modificam quando ela e os vizinhos se juntam. O entusiasmo é o mesmo, mas toma um rumo diferente. Divertem-se tanto juntos que agora é difícil separá-los!

Quando chega da escola, Inês já não se concentra nos trabalhos de casa. Anda desatenta sempre à procura dos amigos e vice-versa. Quando não é ela que o chama é ele que a chama. O entusiasmo é igual. Sempre que chegam a casa, a primeira preocupação é procurarem-se. Como o amiguito anda no infantário, tem muito tempo para brincar, mas Inês tem de aprender as contas com transporte. Assim, estabeleceram um plano estrito a ser seguido por ela com a ajuda da mãe. A ideia é continuar a realizar o trabalho, antes de Inês se entusiasmar com as aventuras partilhadas.

Uma vez a mãe aborreceu-se com ela. Tinha começado a fazer uma ficha de matemática mas levantava-se com frequência andando de um lado para o outro. Voltava a sentar-se e continuava a resolver as contas. De repente, lembrava-se, e erguia-se para ir à varanda. Ficava por lá uns momentos para regressar depois frustrada. Baixava-se e continuava o trabalho de casa. Quando ouviu uma voz, a sua cabeça espetou-se no ar atenta. Levantou-se num ápice e foi até à varanda. Ao descobrir o amiguito em cima do muro à sua espera, largou apressadamente o lápis em cima da mesa e desapareceu. A mãe chamou-a, respondia mas não obedecia. A mãe, que estava doente, começou a impacientar-se e chegou mesmo a lamentar não ter a filha mais velha presente que a iria buscar pelo braço e a obrigaria a sentar-se à mesa até acabar o trabalho. Não obedecia à avó nem à mãe. Como fazer Inês obedecer? Se ao menos não tivesse tantas dificuldades nas contas… continua a esquecer-se dos que vão de trás. A mãe já a ensinou que a partir da soma dez vai sempre um ou mais de trás que deve somar à coluna seguinte.

Só a noite os separou. A mãe estava muito zangada. Combinou com ela que a primeira tarefa a realizar quando chega a casa são os trabalhos e, de pois, a brincadeira. Enquanto não acabar tudo não pode ir brincar. Há tempo para tudo. Diz ao amigo. “Eu vou fazer os trabalhos de casa e, quando terminar, venho chamar-te!” e quando tiver de ir lanchar basta fazer o mesmo diz ao menino “Espera um bocadinho que vou lanchar” ou “ Vai lanchar também, o primeiro que chegar, chama.

Inês olhou séria para a mãe. Avaliou o rosto severo e percebeu que não estava a brincar. Ficou pensativa.

- Mas se eu disser para esperar ele vai-se embora!

A mãe sorriu.

- Não vai, não! Gosta tanto de brincar como tu ou mais! Estará lá sempre! Ele mora aqui mesmo ao lado. Se não puder brincar numa altura pode noutra. É preciso ter paciência!

Como a mãe a compreendia! A mãe tinha muito trabalho. A diferença de idade entre ela e os irmãos era tão grande, e tinham também as suas responsabilidades, que passava muito tempo entregue a si própria usando a sua imaginação como companhia! É bom mas pode cansar quando a solidão é muita. Mesmo quando é uma solidão acompanhada! Não a poderia censurar. E não estava! Tentava só que ela pudesse fazer tudo de forma a não se prejudicar na escola. A escola também é importante! E ela é inteligente!

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Sábado, 13 de Março de 2010

Inês e a doença da mãe

A mãe da Inês está doente. É outra vez aquela dor muito forte que parece varrer o seu corpo de cima para baixo e de baixo para cima com a força de uma descarga eléctrica. Chama-se ciática e é muito dolorosa. Teve de se deslocar de ambulância ao hospital por duas vezes seguidas. Os medicamentos para as dores não haviam tido efeito. A meio da noite de sábado para domingo, teve de regressar, já de madrugada, porque não se podia erguer para ir à casa de banho. Ainda tentou, mas as dores eram tão fortes que a fez desistir. Parecia que se partia toda. Foram os gritos de que mais chocaram Inês. Nunca tinha assistido, na sua curta vida, a uma situação tão dolorosa. Nem mesmo quando o irmão lhe partira acidentalmente a boneca na brincadeira. Tentou amparar, com a ajuda da irmã mais velha, a mãe no sofrido exercício de se sentar na cama e de se pôr em pé. Nada feito. Tiveram de desistir. O pesado corpo bateu ruidosamente no colchão abafando os terríveis sons num alívio sereno.

Fora uma semana estranha. Estivera durante cinco dias em casa com uma otite e, naqueles dois dias de descanso, quando se preparava mentalmente para regressar à escola nessa segunda-feira que se aproximava velozmente, a mãe sentira-se subitamente mal ao princípio da tarde de Sábado e já não se conseguia mexer do sofá onde se sentara no final da mesma. A irmã chamou a ambulância. Os bombeiros vieram. O irmão, que estava de serviço, acompanhara os colegas. Inês ficou a ver a mãe deitada na maca que estava a ser introduzida na traseira da alta carrinha. Aproximou-se do muro alto da vivenda, pediu colo à irmã e acenara aos olhos que divisava por entre os vidros baços do veículo.

  Fechada a porta, a casa caiu no seu habitual sonambulismo, dando espaço sonoro à televisão da sala que lhes fazia companhia. Aninharam-se no sofá e taparam as pernas com o cobertor. A irmã retomou o estudo interrompido, sempre com as vozes dos actores gritando baixinho as suas aflições fictícias. Como são bons mentirosos os actores! Houve uma altura que Inês não distinguia as estórias da vida real. A mãe teve de lhe explicar que aqueles filmes eram iguais aos que via de desenhos-animados. A única diferença é que os bonecos eram substituídos por pessoas que fingiam ser aquelas personagens. Demorara um pouco a compreender totalmente a explicação mas chegara lá. Depois daquele comentário impressionante sobre a elaboração de um filme que transfigurava os actores, percebeu finalmente. As estórias eram inventadas também.

  Agora, estava ali muda e quieta muito chegada ao calor do corpo da irmã mais velha. Tentava seguir os acontecimentos mas não conseguia concentrar-se. As perguntas  saltavam-lhe constantemente à inquieta mente. Se a mãe voltava? É claro que voltava, respondia pacientemente a irmã mais velha às voltas com uma difícil disciplina chamada História. Se demoraria muito tempo? A irmã não sabia, mas pensava que não, que voltaria rapidamente dependendo do problema. Mergulharam as duas no silêncio.

  Não se enganaram. Por volta da meia-noite, a mãe regressou a casa. Depois das poucas horas passadas num sono sobressaltado, regressaria cheia de dores às urgências. O irmão, ainda de serviço nesse fim-de-semana acompanhá-la-ia. Só que, desta vez, ela não ficaria por ali. Seria enviada para outro hospital para uma especialidade chamada ortopedia. Inês nunca ouvira falar nesse nome. A irmã explicou que se tratava de uma especialidade médica que tratava os ossos das pessoas, as articulações, tendões… ela iria perceber melhor mais tarde quando estudasse o corpo humano no terceiro ou no quarto ano. Inês ficou triste. Estava impaciente. Era naquele momento que precisava de entender para ter menos medo e poder descansar a sua preocupação. Mais um dia sozinhas. A avó, alertada por um telefonema acidental que fizera para sua casa, ficara alarmada com o estado de saúde da filha e acorrera com o marido o mais depressa que conseguira, arrastando atrás de si o seu próprio doente, o marido, com a doença de Alzheimer que o tornava confuso. A diabetes também lhe estragara a visão. Estava quase cego. Abriu-lhes a porta e o sossego terminou para dar lugar ao cruzamento de vozes. Maria, a irmã mais velha de Inês, aproveitara para pegar nos seus livros empilhados no chão da sala e regressou ao quarto ao encontro do sossego da concentração. Inês aproveitava o dia ensolarado para brincar no estreito quintal que rodeava a casa. Primeiro, escolhera a varanda do quarto a mãe, depois trocara-a pelo empedrado do recinto exterior da casa, quando descobrira os pequenos vizinhos a trotar ao lado do muro da sua casa que define a divisória das duas propriedades, chamando-a energicamente para a brincadeira. Inês, que esperava desesperadamente este chamamento respondeu alegremente. Trepou o muro com a ajuda do portão grande e ali permaneceu numa jovial algaraviada. Lentamente, o chão começou a encher-se de objectos que apoiavam as suas imaginações.

  À noite, a mãe regressou com mais medicamentos. Tinha ainda muitas dores mas já não se mexia constantemente no incómodo das dores nem arfava ou gemia. Estava visivelmente mais calma. Dormiu com ela, numa tentativa de a poder ajudar caso fosse preciso.

  A segunda-feira era dia de escola. Inês fez beicinho. Não queria ir. Tinha medo que pudesse acontecer algo à mãe durante a sua ausência. Outro problema se colocava. Não havia quem pudesse levar a pequena até ao estabelecimento de ensino. O autocarro saía da paragem pouco antes da hora da entrada. A irmã saía cedo para apanhar o comboio pois estudava noutra localidade. O liceu local não tinha a matemática pretendida. O irmão só saía mais tarde do serviço voluntário. Tudo muito complicado. A mãe é o motor e a família o carro puxado por ele. Sem ela ficavam imobilizados. Concordaram com a sua permanência em casa. Inês estava feliz. Era uma adulta em ponto pequeno, carregando nos seus frágeis ombros a responsabilidade de uma enferma imobilizada.

  A manhã acordou radiosa como se quisesse iluminar a sua alma antes sobressaltada e agora mais serena. Acordou cedo. Deu o primeiro medicamento à mãe e preparou-lhe o pequeno-almoço. Cereais com leite. Entregou o outro comprimido à mãe e esperou que ela se aconchegasse na cama. Observou o rosto distorcido pelas ocasionais e fortes dores.

  A mãe, ajudada pelos analgésicos (são aqueles medicamentos que tiram as dores às pesoas ajudando-as a mexerem-se) conseguia movimentar-se com muita dificuldade na direcção da casa de banho. Permanecia junto dela com medo que caísse a qualquer momento. Ainda não controlava a perna direita que arrastava um pouco. Sentava-se com dificuldade, devido ao sofrimento, e os sinais de alívio só regressavam ao rosto quando se estendia com cuidado na cama. Inês brincava à volta da cama parando de vez em quando para observar o rosto materno e atenta às horas da medicação. Ao lado da almofada, mais ou menos a meio da cama, amontoavam-se caixas dos fármacos com as devidas etiquetas que a mãe manuseava periodicamente para ver qual dos medicamentos deveria tomar. Tentava ordená-los para não se esquecer de nenhum. Era um bocado confuso!, pensava Inês sem se atrever a dar a sua opinião. Percebia que era a única forma de a mãe poder chegar até eles.

  A professora telefonou. Aproveitara o intervalo para procurar informações da aluna desaparecida durante uma semana inteira. Inês imobilizou-se no fundo da cama olhando na direcção da televisão mas com as orelhas orientadas para a conversa. Percebia agora as palavras dos irmãos. A escola era obrigatória e não podia faltar muito tempo à escola. Percebeu que tal atitude poderia trazer, apesar da sua boa vontade, problemas para a mãe. Aquiesceu. Iria à escola. A irmã levava-a à escola no caminho para a estação. Mesmo assim lia-se a tristeza da separação nos seus límpidos e rasgados olhos castanhos-escuros.

  A mãe sorriu-lhe:

  - Eu também vou ter muitas s saudades tuas! Vou ficar à tua espera. Logo que chegues, vamos fazer as duas os trabalhos de casa em atraso e continuar a treinar as contas com transporte – as de somar e as de subtrair.

  Inês é distraída. Esquece-se sempre dos que vão de trás. Mas é inteligente e aprende depressa.

  - Não sais da cama! – avisou a pequena antes de sair.

  - E iria  para onde? – riu-se a mãe.

  Com o tempo a mãe melhorou lentamente e, embora esteja longe de estar boa, e as dores ainda a incomodem bastante, e a vida esteja ainda longe de retomar a rotina habitual, Inês age de forma confiante e vigilante, continuando a ser uma enfermeira em ponto pequeno.

 

Fátima Nascimento

 

Março 010

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Sexta-feira, 11 de Dezembro de 2009

A eterna história de amor de Pedro e Inês

A luz do dia morria lentamente nos braços da noite. O vasto salão esperava pacientemente o grande momento. Gasto na passagem dos séculos, já assistira a muitos acontecimentos reais. Era apenas mais um. Num aconchegante canto, um jovem alto, ruivo, de porte atlético vigiava os sinais da noite. Nas paredes, docemente iluminadas pelos possantes archotes, dançavam gigantescas figuras fantasmagóricas.

  Um grupo de vozes aproximava-se solenemente, arrancando o jovem aos seus distantes pensamentos. Virou-se corajosamente para enfrentar o maior desafio da sua vida – iria conhecer a noiva escolhida para si.

  Entraram no salão silenciando as crepitantes chamas da espaçosa lareira. Falavam calmamente entre si, como se o tempo tivesse desistido da sua interminável contagem.

  O coração saltava-lhe no peito. Chegara o momento. Deslizou suavemente a coberto da cúmplice obscuridade, rodeando-os, como um animal avaliando a sua presa.

  Era o último sítio onde lhe apetecia estar. Entre as cabeças unidas, meio escondida entre duas figuras femininas elegantemente vestidas, dois claros olhos cristalinos, semelhantes à água pura da corrente dos ribeiros, que exploravam distraidamente as imediações, poisaram suavemente nos seus, para não mais se desviarem. A cara esguia, os olhos igualmente claros, os cabelos e a barba ruivas faziam daquela personagem um belo príncipe retirado de um conto de fadas. Havia algo na forma como olhava que lhe inspirava toda a confiança possível. O mundo em redor desapareceu por uns eternos instantes, e nada mais no mundo existia para além dos dois. Aquele olhar, ainda que breve, disse mais que uma torrente de palavras. Para além dos olhares, os dois corações pareciam ter ganho uma incomensurável força, uma vontade determinante, passando acima de todas as forças humanas. A poderosa força uniu-os por laços de uma força tal que nenhuma outra humana seria jamais capaz de quebrar. A vida parecia deslizar à frente dos seus olhos. A vida finalmente parecia fazer sentido.

  O burburinho gerado à sua volta trouxe-os de volta à terra. Talvez tivesse sorte, apesar de tudo! A esperança cresceu no seu peito. Desviou a custo o olhar da bela senhora, para dar atenção ao idoso cavalheiro que ultrapassava a distância que os separava de braço estendido, empurrando suavemente com o outro uma elegante dama que lhe era apresentada como noiva. O olhar desviou-se instintivamente na busca daquele com que se cruzara há uns minutos atrás. Desaparecera do seu campo de visão. Concentrou-se na conversa que se desenrolava à sua frente e nos simpáticos olhos que o inspeccionavam. Corou perante o interesse feminino. Seguiu-se a presentação do restante pessoal que compunha o séquito. Um desfile de caras e nomes passavam elegantemente diante de si, desenhando a respeitosa vénia acompanhada da delicada genuflexão. Deixara de ser um príncipe de carne e osso para se transformar na estátua do herdeiro do trono. Algo morrera dentro si. Talvez para sempre. Sabia, desde pequeno, que nunca poderia ceder à sua vontade pessoal uma vez que esta se confundia com a da nação. Ele e a nação eram uma só identidade. Ele deveria abdicar de si, para se concentrar no bem desta. Sabia também que não estava preparado para tal. Sabia que não poderia governar sem ter a seu lado a pessoa que realmente escolhesse. Não encontraria a força necessária para tal. Mas era a pessoa falar. O príncipe sabia o que devia fazer. Quem disse que se podia abdicar da pessoa a favor da posição social? Ainda tinha bem presente as histórias das batalhas que seu pai travara contra os seus irmãos de sangue. Tudo, na sua opinião, porque não casara com a pessoa que amava. As amantes eram inúmeras e directamente proporcionais aos filhos ilegítimos gerados! Por si, teria cedido o trono, se tivesse de escolher entre o combate, o reino e o amor. Ele amava o seu reino, nada de confusões, mas entre ter uma vida vazia sentado num trono e uma vida plena, ainda que curta, em cima de um cavalo, combatendo pela pátria, preferia esta última. Talvez por isso sempre se dedicara a passatempos que o afastavam do paço e da corte, onde jovens mulheres tudo faziam para lhe captar a atenção. Nenhuma se aproximara sequer do seu coração. Preferia a vida simples às intrigas da corte.

  Um suave rosto arrancou-o às suas divagações. Recolhia-se, nesse momento, na vénia mais elegante que jamais presenciara. Elevou-se, os olhos postos no chão, retirando-se para fora do seu campo de visão como um coelho assustado. O olhar do jovem príncipe seguiu-a por momentos, até o puxarem de volta aos seus deveres. Céus! Como odiava, naquele momento, aquela palavra! Por que não poderia a vida ser perfeita? Por que tinha sempre de haver opções dolorosas? Por que não era aquele rosto o escolhido? Como seria a sua vida dali para a frente? Como voltaria a ser o mesmo jovem despreocupado que ainda obedecia à sua vontade de jovem herdeiro? Estava preso! E da forma mais cruel! Teria de casar com a esposa escolhida para si e encarar com aquela que o seu coração escolhera na primeira troca de olhares! Como iria sobreviver a tal prova? Faria o que sempre fizera até ali – refugiar-se-ia nas suas ocupações ao ar livre. A caça, para além de um exercício era, sobretudo, uma evasão. Agora mais que nunca. Haveria de conseguir nele uma solução para o intrincado problema. Amordaçou o seu coração. Não lhe podia dar ouvidos. Não o faria! Concentrou-se nas conversas que se desenrolavam à sua volta. Inútil. Tudo avançava como programado. Ele era só um mero espectador assim como a jovem que haviam elegido para si.

  Passaram ao salão seguinte, mais iluminado, onde uma multidão esperava de pé, solenemente. Uma vez apresentada a futura esposa do príncipe herdeiro, iniciaram-se as cerimónias. Tomaram o seu lugar nas longas mesas e deu-se início ao banquete. A jovem, ao seu lado, sorria-lhe, de vez em quando, tentando entabular conversa. Ele respondia educadamente mas sem grande interesse. O seu olhar estendia-se pelo salão à procura de um certo rosto. Encontrou-o entre muitos outros sorridentes e faladores. Estava silencioso, tal como ele. Recolhido em pensamentos, tal como ele. Nada do que se passava à sua volta parecia interessar-lhe. Ninguém parecia reparar em si. Os olhos presos nos futuros esposos, tudo o resto parecia não ter interesse. Nem mesmo a sua beleza ímpar parecia captar a atenção. Dava graças a Deus por isso! Nada mais lhe apetecia do que a segurança do aparente alheamento. Dentro de si, um fogo parecia arder brutalmente, sem que lhe conseguisse pôr cobro. A confusão reinava naquele coração e na bela fronte, ainda mal refeita do choque. Encontrara o homem da sua vida, o grande amor com que sempre sonhara desde pequena. Estava ali. A alguns metros de si. Mas a história não se desenrolara como nos seus devaneios adolescentes. A sua felicidade, recém encontrada, estava moribunda. Não havia esperança para tal sentimento. Teria de arranjar uma solução quanto antes. Nem que isso tivesse de envolver o seu regresso a Espanha. Apaixonar-se pelo futuro marido de uma das suas maiores amigas não estava nos seus planos.

  Sentiu os olhos presos à sua figura. Levantou-os com precaução e reconheceu os do homem que cativara o seu coração. Também ele parecia alheado de tudo quanto se passava à sua volta. Mais uma vez, e por breves momentos, o mundo pareceu apagar-se à sua volta. Receosa de levantar suspeitas entre alguns dos assistentes, ela recuou ligeiramente até ficar coberta pela imponente figura masculina instalada a sua lado que falava entusiasticamente com o seu vizinho. Percebeu mais do que viu o seu olhar desamparado. Olhou à sua volta. Ninguém parecia reparar na troca de olhares e na insistência com que o príncipe a procurava com os olhos. Subitamente, lembrou-se da amiga, a princesa de quem era aia e de quem era confidente. Ter-se-ia apercebido do interesse do seu futuro esposo por ela? Arriscou uma tímida inclinação de cabeça para se certificar de que ela estava feliz. Mais uma vez, o príncipe, sempre atento a apanhara nessa verificação. Satisfeita com o resultado da sua avaliação, recostou-se e deixou-se levar pela sua imaginação, onde a perfeição reina colmatando as falhas da vida. Imaginara, com certeza, fulgor da sua imaginação juvenil, uma paixão por um nobre que merecesse o seu amor, mas nunca o próprio príncipe. Nunca colocara títulos ao seu imaginário eleito. Disso estava certa que conseguiria, dada a sua ascendência nobiliárquica. A sua atenção concentrava-se mais na pessoa que lhe estaria destinada.

  Por entre as mesas, o bobo arrancava gargalhadas aos presentes, com as mais incríveis imitações e anedotas. Todos se divertiam naquela noite que representava a felicidade para um reino que poderia contar com o sempre desejado herdeiro, caso acontecesse algum acidente ao príncipe.

  O baile abriu o desejado espaço, servindo de cobertura ao seu embaraço. Não sabia lidar com tal situação. Nada a prepara para isso. Restava-lhe, para já, o recolhimento. E a distracção. Isso! Iria procurar distrair-se. Aceitou um convite para dançar. Na dança de grupo, voltou a cruzar-se com ele. Roçaram-se, tocaram-se, afastaram-se. Concentrava-se na dança para se esquecer do sentimento forte que a dominava sempre pensava, via ou percebi o seu interesse por si. Deixou-se invadir pela música. Acabada a dança, recolheu-se para um canto obscuro onde pudesse passar despercebida. Ali ficou fitando todos os pretendentes às danças seguintes. Também o príncipe cedera lugar a outros. Permanecia sentado, absorto. Ninguém parecia reparar na sua disposição. Habituados a rotulá-lo como um “bicho do mato”, já nem ligavam a isso.

  A animação avançou pela noite dentro. A noiva tinha de se retirar. Inês avançou, juntamente com as outras colegas, para seguir e ajudar a sua senhora. Assistiu à despedida dos futuros esposos. Na retirada, sentiu a mirada presa na sua nuca.

 

II

 

  A manhã acordou calma. Os sinos agitavam-se numa alegria há muito desejada. Os raios de sol espreguiçavam-se alegrando todos os espaços onde tocava como se de uma varinha mágica se tratasse. Desde cedo, o povo amontoava-se ao longo das ruas na expectativa de observar o cortejo.

  A agitação no palácio começara ainda mal o dia despertara da sua longa noite de sono. Criados entravam e saíam do paço atarefados. Os espaços decoravam-se de acordo com a riquíssima cerimónia.

  A noiva acordou com um grande sorriso e a ansiedade própria criada pela chegada do momento. Na véspera, confessara a sua paixão pelo seu príncipe. Nunca na vida imaginara que lhe pudesse suceder algo assim. Ouvira falar do jovem príncipe português, mas haviam-lhe aconselhado calma. Assim que o vira, tão belo, tão sério, tão garboso sentira-se imediatamente atraída por ele. Não se parecia com nenhum outro nobre que até então conhecera. Não se referia ao aspecto físico mas ao temperamento. Era como se encerrasse em si um mistério. E estava disposta a aventurar-se na sua descoberta.Sentia como uma verdadeira princesa que era, a viver um conto de fadas. E sentia-se feliz por poder partilhar o seu segredo, a sua felicidade com elas. Todas falavam ao mesmo tempo mostrando o seu contentamento. Chegada a hora de se vestir, todas cumpriram as suas tarefas. A noiva, finalmente penteada, vestida, desceu dos seus aposentos rumo à felicidade.

  O príncipe mal dormira nessa noite. Encostado à janela do seu quarto, observando o claro luar que banhava as ruas, perguntava-se se o povo imaginava o sacrifício que iria realizar só para satisfazer o seu desejo de o ver casado. Seria o seu povo feliz? Poderia, ao contrário de si, escolher livremente a sua eleita ou estaria, como ele, sujeito à imposição familiar, já que estava liberto das razões de estado?

  Um pesaroso carro de bois tardio, gritando o esforço da subida, captou a sua atenção. A sua marca agigantava-se na alta parede de pedra, pintada pelos pincéis cinzentos da lua.

  Na véspera, à tarde, aproveitara para caçar. Era o único momento em que sentia verdadeiramente livre. O único em que era o caçador e nunca a caça. Era assim que iria passar grande parte do tempo de casado. Fora. A caça seria a desculpa ideal para se afastar de um local onde se sentia cada vez pior. Não fora a sua condição real, nada o ligaria àquele edifício e ao ambiente inerente. Resignou-se. Não havia estratégia alguma que o libertasse daquele sufoco. E da infelicidade que o esperava e à moça simpática que esperava muito de si. Mais do que alguma vez conseguiria dar. Não era como a maioria dos homens que conhecia que saltavam como coelhos de leito em leito, usando as mulheres como simples divertimento. Detestava este tipo de mulheres! Era homem de uma só mulher – a eleita.

  Afastou-se da janela inundada da intensa luz leitosa que mergulhava o quarto real num ambiente feérico. Sentou-se na cama e descalçou as botas. Gostava de fazer estas tarefas. Dava-lhe liberdade e, consequentemente, a tão amada privacidade. Deitou-se com os braços dobrados atrás do pescoço. Passou em revista os acontecimentos do dia. Uma única lembrança o alegrava – a bela jovem. Recordou os seus modos elegantes, a sua timidez, o seu recolhimento tudo misturado com uma candura saída do seu angelical rosto adornado de um sedoso cabelo loiro, um rosto estreito e bem delineado. Tudo nela era belo! Nenhuma mulher o prendera daquele modo e muito menos no primeiro olhar trocado! Nesse instante, ele tivera a certeza! A única alegria – continuaria a vê-la. Isso faria com que saltasse da cama com vontade de retomar cada dia as suas funções. Céus! Como gostaria de ter aquela jovem a seu lado! Como o mundo lhe pareceria menos perigoso! Mas não! Nada disso contava! Ninguém poderia entender a sua posição! Era como se não encaixasse no seu tempo! A vida, tal como era vivida, não lhe dizia nada! Não nascera com aquele espírito! Não encarava a vida com aquele ânimo leve!

  Cansado de tanta luta interior, deixou-se vencer pelo sono. Foi acordado pelo seu escudeiro que tocou levemente no ombro. Acordou sobressaltado, com o toque dos sinos! Estremunhado virou a cabeça na direcção do barulho e depois do rosto debruçado sobre si. Estava a hora! Tinha de se levantar, lavar e preparar para um dia de alegria para todos, menos para si. Suspirou e levantou-se na direcção da toalha. Observou-se ao espelho que virou do lado contrário. Vestiu-se maquinalmente, ajudado pelo cuidadoso rapaz que desde sempre o acompanhara. Tornara-se um bom amigo. Percebia o que se passava consigo. Não fora em vão que o acompanhara estes anos todos e em todas as suas aventuras! A forma como o olhara e colocara as mãos nos braços, mostrou-lhe que percebera o que se passava. Sabia de tudo! Fitou-o incrédulo. O piscar de olhos que se seguiu não deixou lugar para dúvidas. Endireitou-se para enfrentar o destino. Não estava só.

 

 

III

 

  Os festejos que se seguiram à cerimónia religiosa, passaram como num sonho. Tudo parecia irreal, envolto numa névoa densa. Toda a alegria parecia desenrolar-se a muitos quilómetros de distância, numa povoação esquecida do tempo. O corpo que se movia não era o seu. Parecia obedecer a um mecanismo autónomo à sua vontade. E deixava-se arrastar de círculo em círculo como um autómato. Esvaziara-se completamente. Julgara que seria mais fácil combater a vontade de fugir, de se refugiar na segurança dos bosques. A jovem a seu lado sorria entregando-se a uma felicidade que só ela sentia. Sentiu-se um malfeitor usurpando um sentimento não correspondido. Não tinha o direito! Ninguém tinha o direito! Mas como combater a vontade familiar e as pesadas razões de estado? Ninguém se lembraria que um rei feliz cumpriria melhor os seus deveres? Não falava das suas funções mas do sentimento que as acompanhariam. Era o preço a pagar por se nascer príncipe. Odiou-se e a toda aquela farsa que se desenrolava à sua volta. Abandonou estas ideias receando que o seu rosto o traísse. Voltou a esvaziar-se. Assim, não correria risco algum de passar a mensagem à moça que, tal como ele, não tivera a mínima hipótese de escolha. Não tinham culpa! Haviam sido apanhados nas armadilhas de estado que nada tinham a ver com o estado do coração. Imaginou a luz do bosque àquela hora do dia, que atravessava a folhagem em focos doirados abrindo brechas de luz no solo. O silêncio só interrompido pelos ruídos naturais de um animal fugidio ou de uma súbita batida de asas alarmada. Os passos dos cavalos que seguiam cautelosamente um trilho. Pensou ainda nas cavalgadas em campo aberto onde cavalos mediam forças entre si, esforçando-se para obedecer à vontade humana. Os risos no final de cada corrida, as mãos que se juntavam no final em sinal de amizade. O céu azul … foi então que a bela face surgiu junto de si. Por momentos juntou-a ao ambiente das suas recordações. Como se encaixava bem! Parecia retirada delas! Abandonou a dança e sentou-se. Já realizara o seu dever. Pelo menos, assim o pensava. Não lhe pedissem mais! Sentou-se aparentemente extenuado com o esforço. E não era físico! Já passara por provas físicas mais exigentes sem revelar tal cansaço! Era o esforço psicológico! Não sentia ânimo. E, agora, menos que nunca! Estava dividido entre o amor e o dever! E no casamento não há dever! Ali, pensava-se o contrário! Suspirou. Uma mão pousada no seu braço, trouxe-o de volta à realidade. A sua esposa segredava-lhe algo ao ouvido! Não ouviu, mas também não se esforçou, limitando-se a sorrir. Estava morto! Morrera nesse dia, como homem. O ser reinante, esse, continuaria desempenhando as suas funções. Mas, tanto quanto possível, usufruiria da liberdade que a sua condição de príncipe herdeiro lhe permitia.

  Aquela noite, tão esperada por tanta gente, iria ser protelada por ele. Não queria deitar-se num leito com um rosto belo, é certo, mas onde não havia paixão! Não se sentia preparado para mentir!

  O casamento acabaria por se consumar, para alívio dos reais conselheiros paternos. Viriam os nascimentos e as mortes e as longas ausências. Nos intervalos, a presença do fiel rosto amado que parecia ler no seu íntimo sentimentos e ideias que escapavam aos outros. Sentia cada vez mais necessidade de proximidade. Procurava-a já não só como jovem apaixonado, mas como homem. Trocavam algumas palavras que o deixavam esfomeado, como um mendigo. Precisava de mais. Era como uma necessidade. Os encontros tornaram-se mais frequentes. Até que acabaram por se consagrar a esse amor tão grande que os possuía.

  A corte, sempre atenta aos mexericos, acabaria por se acautelar. A inquietação queimava-lhes as entranhas. Que se passava? Olhos e ouvidos mantinham-se sensíveis ao último rumor.

  Sentindo o alvoroço à sua volta ou informados dele, os dois mantiveram uma dolorosa e forçada ausência. Mal se cruzavam. Mal se olhavam. Mal se viam! E quando se viam na necessidade de manter algum contacto mercê das necessidades palacianas, faziam-no com toda a gravidade da diferença de posições.

  Mas era tarde de mais! Os cortesãos e suas consortes imaginavam sempre um olhar esquivo, um gesto furtivo que os traía! Seriam culpados quer quisessem quer não! Não havia clemência para si! O que incomodava realmente os conselheiros reais, não era a sua condição de amantes. Afinal, todos os reis haviam tido as suas amantes, ao longo da sua enraizada genealogia. Era o sentimento que o acompanhava e que punha em risco tudo o que consideravam impossível de ser misturado. O sentimento forte que o unia à jovem senhora parecia ser importante e, desde logo, de interesse do estado. A delicada saúde da princesa e a terrível batalha contra as doenças que pareciam atacar impiedosamente a família real, pondo em risco a sempre almejada sucessão, que estava agora nas mãos de um pequeno e adoentado príncipe. A morte da princesa colocou em estado de sítio uma corte já toda alimentada de mexericos. O que aconteceria agora? Iria o príncipe assumir aquela relação? A má vontade contra a jovem que roubara os favores do herdeiro do trono aumentava. Sentindo a pressão crescente e temendo o que pudesse acontecer, o príncipe tomou uma decisão – retirá-la ao ambiente opressor que enchia os corredores dos palácios.

  Foi num manhã nevoenta. Saíram com a madrugada ainda estremunhada, aproveitando o silêncio palaciano. Em breve dariam pela sua falta. Mas ainda faltavam algumas horas, até darem pela sua falta. Ajudou-a a subir para a carruagem, que esperava longe dos olhares vigilantes das sentinelas, montando ele o seu amado e fiel cavalo. Seguiram a secreta rota planeada. Um suspiro de alívio soltou-se dos alicerces da sua alma. Olhou para trás para ter a certeza que não eram seguidos. O caminho estava livre. Descreveram a última curva que os afastava definitivamente do ambiente palaciano.

  O rumor da fuga dos dois amantes foi rapidamente descoberta. Todos se sentiam entorpecidos com a audácia do homem maduro que, até ali, parecia não se interessar por nada relacionado com a corte ou o reino, sempre mais interessado em folgar com o seu grupo de seguidores.

  O velho rei cofiava a barba preocupado. Não sabia o que pensar da repentina fuga do filho. Defendeu a primeira ideia que lhe veio ao espírito para se defender da corrente de mentes agressivas e sibilinas que nada conheciam do amor. Tinha de pensar. Para isso, precisava de estar só. Estar só, naquele momento, era sinónimo imperioso de clareza de espírito. Despediu-os num gesto que os deixou admirados. Eram amigos do rei e haviam-no acompanhado em todas as etapas da sua já longa vida, havendo-se mantido sempre fiéis. Muitos deles remontavam à época da querela que o havia oposto ao seu pai e aos irmãos bastardos. Sobretudo ao preferido do seu pai. Nunca esquecera esse momento, para ele, de grande traição paternal. O pai julgara o seu irmão bastardo com mais perfil para reinar do que o seu filho legítimo que havia, desde pequeno, sido preparado para tais funções. Mais do que as razões estatais, a honra levara-o a pegar em armas! Sentira-se ferido! Admirara, respeitara e amara muito o pai para aguentar uma afronta dessas. Agora encontrava-se perante uma situação semelhante. Pai e filho pareciam combater em hostes opostas. Não era uma questão de estado, mas não deixava de ser uma questão familiar. Respeitava o filho, mas tinha de pensar nas implicações da sua atitude. Resolveu desvalorizar tal preocupação, desviando a atenção dos conselheiros para outros assuntos. A saúde do único neto preocupava-o. Amava-o na sua condição de órfão. Tomara para si o papel de pai-avô.

  A desconfiança fê-los afastar o mais possível da temida selva palaciana. Qualquer lugar não era ainda suficientemente longe! A felicidade dos dois amantes desenrolava-se livre mas atenta. O tempo começou, pouco a pouco, a descurar a vigilância. Mais interessados na descoberta do sentimento e na felicidade que este lhes trazia, acrescentando rebentos à frondosa árvore do amor.

  Na corte, a vida retomava o seu alento mas sem o fulgor de outrora. Notícias chegavam regularmente de Coimbra. A sua família aumentara. Não eram nada más novas! Dada a débil saúde do neto, não era mau saber que a sucessão continuaria assegurada. Recebera mesmo um convite para os visitar. Não era preciso ser muito perspicaz para notar que todas as notícias eram acompanhadas de uma felicidade que raros homens na sua posição haviam conhecido. O seu filho vivia-a. Como pai sentia-se intimamente feliz por ele. Era o seu último baluarte contra a má vontade de uma corte desconfiada, revoltada e invejosa de uma felicidade e um amor únicos. Não queria que a má vontade o afastasse do seu único filho. Recusava-se a fazer com o filho aquilo que o seu pai fizera com ele. Compreendia-o. Ou, pelo menos, achava que sim. Também ele conhecera alguns momentos felizes. Afinal, não era isso que marcava um homem?

  Apesar da distância, a má vontade contra os dois amantes não diminuíra. Eram constantes as insinuações. Notícias chegavam continuamente. Algumas distorcidas, pensava. Continuava a desvalorizar a situação. Dedicava-se ao neto que preparava para um dia receber as rédeas do reino.

  Revoltados e inquietos com a aparente indiferença do rei, os conselheiros, alarmados com as notícias a que davam dimensões desproporcionadas, incomodavam sempre o monarca já cansado dos anos e das intrigas de estado. A sua tolerância para com o assunto já os indignava. Subitamente, um novo adversário ganhou forma. O povo, que até então se mantivera calado sobre o assunto, murmurava inquietações contra o jovem casal. De onde teria saído tal notícia? Quem se atrevera a levar para a praça pública semelhante assunto? Não acreditava nos seus ouvidos! Era um assunto familiar!

  Os rumores recrudesciam. Alguns deles não passariam de histórias deturpadas, mas nem por isso deixavam de ser inquietantes. Impor a sua vontade ao filho? Conhecia demasiado bem para acreditar que a sua vontade pudesse ter alguma influência no filho! Más influências? Receber visitas de familiares da mulher não o tornava necessariamente um conspirador internacional! O rei de Espanha estava preocupado? Não haveria necessidade para tal! Nem ele, nem o filho tinham vontade de colocar o reino numa posição difícil fosse porque razão fosse!

  Ninguém parecia ou queria compreender a posição do rei. Algumas vozes afirmavam, à boca pequena, que se encontravam às escondidas para debaterem assuntos de estado. Estaria o rei manipulado pelo filho? A sua devoção ao neto legítimo nada o faria supor. Então por que hesitava em tomar uma posição por dolorosa que fosse? Não era evidente? Não tinha provas que indiciassem uma conduta leviana da parte do filho! O que lhe chegava aos ouvidos não passavam de rumores, que assumiam os contornos da mentira. Não, não admitia que o rei do país vizinho se intrometesse nos seus problemas familiares. Que resolvesse os seus problemas, se os tinha, que ele cuidaria dos seus. Só um aspecto o desconsolava: precisava de paz para o resto dos seus dias e isso não acontecia. Já que não encontrar a felicidade que só o amor traz ao menos a paz para ver crescer o neto feliz. O último rumor quase o pôs fora dele! Não acreditava nos seus ouvidos! Agora, até o neto era envolvido na questiúncula! Não o menino propriamente mas o seu direito ao trono. Riu-se interiormente que a questão era séria! Testavam-no por todos os meios! O menino era o primogénito logo estava assegurado o seu direito ao trono. Nunca ouvira tamanho disparate. Estava cansado de tantos ataques. Como se não bastasse, o povo alimentava a inquietação contra a situação do filho. E se casassem? Talvez diminuísse ou até desaparecesse a questão! Não tinha nada contra uma linda e simpática rainha no trono que por ora lhe pertencia! Tarde de mais! Nada parecia acalmar as escaldantes desconfianças! A má vontade contra a bela e frágil senhora aumentara de tal forma que não era possível contorná-la. Depois, de onde vinham aqueles mensageiros sempre com novas tão frescas mas nada refrescantes? Sentia-se de mãos atadas. Sentia-se sobretudo cansado! O seu reinado não fora nada fácil e não estava a sê-lo! De onde saíam aqueles planos? Estariam malucos?! Não conheciam o filho? Estariam perdidos se tal acontecesse! Temia até pela sanidade mental do filho, mas não admitiu isto! Era demasiado! Perante tal insistência, dir-se-ia não haver outra solução. Mas havia. Tinha de haver. A morte nunca era solução. Não viam as guerras travadas? Só enfraqueciam as partes envolvidas. Passado algum tempo, as forças voltavam a unir-se e tudo se repetia. A morte não era solução! Andava de uma lado para o outro como um animal enjaulado. Sentia-se mesmo assim! Não lhe davam alternativa. Não pressentia nada de bom. Não a queriam no trono! Fitou-os com os olhos congestionados das noites mal dormidas. Que lhes interessava? O filho era novo e casaria depois? Santo Deus, não o conheciam? Tratariam de tudo? Só precisavam de protecção? Hesitou. O folho odiá-lo-ia para o resto dos seus dias. E já eram poucos! Sentia-se adoentado. Agoniado! Detestava ver-se na posição do filho. A culpa era sua. Nunca deveria ter deixado a situação ir tão longe! Deveria dar cobertura ao rapaz. Mas fora apanhado desprevenido. Fizera o que pudera, mas fizera-o mal. Agora, pagaria cara a factura! Nada mais havia a fazer. Tudo parecia escapar às suas velhas e enrugadas mãos que principiavam a tremer, sacudidas por um sistema neurológico corrompido com o avanço da idade. Ele, que controlara sempre tudo, via-se agora impotente para refrear um homicídio real. E tudo parecia conspirar para o seu sucesso. Tudo havia sido planeado. Não, não queria saber dos detalhes. Se tinham de o fazer, fizessem, mas que o poupassem aos detalhes! Nunca se perdoaria pela sua fraqueza!

 

   

 

IV

 

  Inês vivia um verdadeiro conto de fadas iguais aos que contavam na sua infância. Vivia com o seu príncipe, não se casara, mas era feliz e tinha os seus filhos. Não era assim que terminavam os contos de fadas? Tomava conta do seu lar com a ajuda do seu exército de criadas e criados que mantinham tudo a postos sob a sua orientação. A sua beleza, agora amadurecida com a maternidade, haviam sido acentuados com a felicidade que a sua doce pele transpirava. Era um lar como qualquer outro com crianças a brincar dedicando-se aos diferentes entretenimentos próprios da idade. O seu amado dividia a sua atenção entre a dedicação à amada, à caça e aos filhos. Tudo corria divinamente. Viviam num pedaço de céu. E apontava para cima, para uma nuvem branca que parecia um verdadeiro remendo no céu azul. “Estás a ver?”, brincava, “está ali o pedaço que falta”. E riam divertidos. “E não faz falta. Sabes porquê?” – continuava, encarando-a. Ao engraçado aceno negativo do bonito rosto, ele acrescentava – “Porque e nos estava destinado.”

  Permaneceram calados olhando a serena e volumosa nuvem. Sentada nos seus joelhos, um braço à volta do seu pescoço, ela sentia segurança. Poisou a cabeça loira no largo ombro. “Amanhã sempre vais à caça?”. Olhou-a com estranheza. “Porquê, não queres que vá? Sentes-te doente?” – perguntou, inquieto. Desviou a cabeça que acenou com determinação. “Não.”, foi a resposta categórica. “Não estou doente. Só antecipo as saudades. Nada mais.”

  A nostalgia da sua voz impressionou-o. Quase desistiu da ideia, não fosse a insistência da companheira que lhe sorria docemente. À sua frente, os campos estendiam-se para lá das colinas, murmurando cativantes segredos. O céu debruçava-se para acariciar os picos das árvores. Tudo transpirava harmonia. O fim da tarde trouxe a frescura própria da época. Entraram. A quente luz das janelas espalhava-se pela floresta circundante que encerravam no seu seio um terrível segredo. Olhos atentos espreitavam, encobertos pela noite, o amoroso e feliz lar. A notícia da partida do príncipe atraíra os predadores humanos que apertavam o seu cerco.

  A manhã espreguiçou-se, deixando antever um dia morno. Os cavalos esperavam ansiosos a partida batendo nervosamente com os cascos no empedrado. Depois das prolongadas despedidas, lá escapou, sorrindo aos formosos braços que o apertavam meigamente, para se juntar aos homens que o esperavam pacientemente, cobrindo-se da aragem fria da madrugada. Partiram a trote, com um saudoso príncipe a voltar o dorso constantemente para observar a sua amada que docemente o despedia meigamente da janela.

Os facínoras encolheram-se cautelosos nos seus esconderijos, acompanhando o possante trote dos animais. Observavam quem partia, sobretudo interessados em quem ficava. A satisfação preencheu-os. Seria mais fácil do que haviam imaginado! Entreolharam-se incrédulos! Desembainharam as espadas e avançaram cautelosamente atentos a qualquer imprevisto.

  A manhã já ia alta, quando os terríveis homens se aproximaram, ocultos pelo negro silêncio, calculando as milhas calcorreadas pelos belíssimos animais. Segundo as suas estimativas, já estariam bem longe!

  Não foi difícil iludir a vigilância inexistente. Espantaram a criadagem e as crianças que por ali brincavam, incitando-os a abandonarem o espaço, e entraram pelos aposentos da jovem senhora, arrastando-a para fora. Alarmada, não sabia o que pensar. Ainda mal desperta do sono violentamente interrompido, deixou-se levar impotente pelos poderosos braços. Uma angústia, originada pela incompreensão, dominou-a. Uma certeza a inundou – não mais voltaria a ver os seus. E não voltou. Afastados os assassinos e uma vez postas as crianças a salvo, dois criados regressaram tacteando o terreno a medo. Procuraram pela senhora, até a encontrarem sem vida. Debruçaram-se sobre o seu corpo sem vida, sem conseguirem conter as lágrimas. Era demasiado doloroso! O moço da estrebaria montou a cavalo e largou num galope desenfreado.

  Encontrou D. Pedro a algumas milhas de distância, acampado com os seus homens. Não estava? Precisava de falar urgentemente com ele. Uma desgraça acontecera. Um dos seus homens de confiança montou logo a cavalo e partiu no seu encalço. Voltou algum tempo depois acompanhado de um príncipe branco como a cal. Desmontou à vista do moço que lhe contou o que sucedera. Fora tudo muito rápido! As sentinelas da sua confiança haviam sido mortas. Haviam entrado em casa, afugentado a criadagem a quem pediram para se manterem afastados com as crianças. Quando haviam regressado já a encontraram morta. D. Pedro não ouviu mais nada. Montou o cavalo e golpeou-o indiferente às queixas do animal. Os outros seguiram-no mais atrás. À chegada, viram-no saltar do cavalo e correr para casa. Um uivo de dor trespassou a floresta como uma flecha, rasgando o ar. Encontraram-no debruçado sobre o cadáver. A vida não havia sido só arrancada à belíssima jovem, pior do que isso, havia sido roubada a um jovem sobre cujo espírito descera uma noite intemporal. Os dias que se seguiram ao desgraçado acontecimento, foram estranhamente calmos. Um príncipe debruçado sobre a dor, enclausurara-se num silêncio perturbador. Ninguém conhecia os seus pensamentos ou até se pensava. Impotentes, viam-no vaguear sem destino pela casa, pela floresta, pela vida. Nada parecia capaz de despertá-lo daquele magoado torpor, voluntário ou não. Umas vezes, parecia vazio. Outras, parecia maquinar algum plano secreto. Não fazia perguntas. Não dava respostas. Não dizia nada. Remetia-se para um silêncio torturado. Sempre fora um homem sensato pelo que nada temiam. Esperavam serenamente que recuperasse e lhes dissesse o que pretendia fazer. Manteve-se quieto, aquele espectro ambulante. Indiferente a todos e a tudo. Dedicava-se às suas actividades favoritas, mas sem o entusiasmo habitual. Precisava de manter o corpo ocupado, assim como a mente. Algo nele havia mudado. Não sabiam ainda bem o quê. Só lhes restava esperar para ver. Notavam algumas atitudes estranhas no seu comportamento que os alarmava. Se perseguia um animal esquivo, não desistia até o apanhar. Não porque necessitasse da sua carne ou da sua pele, mas por uma qualquer razão desconhecida, que não era prazer. Era uma espécie de vingança. Alarmados, entreolhavam-se, embora não o questionassem. Haviam-se habituado a confiar nele. Eram tomados de uma certeza -  havia mudado. Disso não havia a mínima dúvida. Mas não sabiam ainda a natureza dessa mudança. Tornara-se um pouco obsessivo com todas as empreitadas que tomava entre mãos, desde a mais insignificante à mais grandiosa. Mas não havia nada de grandioso na maneira como agia. Não havia nada de vergonhoso também. A sua solidariedade para com o ser sofredor, revelava-se no silêncio pungente em que viviam mergulhados. Não se afastavam, como se receassem que algo de semelhante lhe pudesse vir a suceder. Acompanhavam-no sempre que se ausentava, não porque lhes pedisse, mas porque sentiam que era seu dever, formando um bizarro grupo, as mentes torturadas ainda pelo choque do que sucedera. Quando estavam sós, a coberto da noite tardia, davam rédea solta aos seus torturados pensamentos. De onde partira a notícia da sua partida? Como havia chegado aos ouvidos errados? Haveria um traidor entre eles? Conhecendo-se há muito, depressa desistiram desta hipótese. E se o pavilhão se encontrava há algum tempo sob discreta vigilância? Se assim fosse, como haviam sido tão cegos? Quem havia decidido cometer aquele acto tão cruel quanto cobarde? Seria alguém da corte? Alguém da confiança do rei? Teria a ordem partido do próprio rei? A confusão e a estupefacção imperavam nas inquietas ideias ainda não refeitas do assassínio que apanhara todos desprevenidos. Quem a assassinara? Fitaram os pés, incomodados. Era a primeira vez que tinham a coragem de rotular o miserável acto. Como conceber um punho virado contra tão distinta estirpe sem o conhecimento da mais alta autoridade do reino? Sim, porque a teoria dos ladrões, concebida por espíritos atordoados, há muito que havia sido preterida.

  O tempo que dizem encarregado de curar todas as dores e ao qual atribuem os bálsamos apaziguadores, parecia não conseguir as melhoras desejadas. Se existem dores que o tempo cura outras existem, frente às quais o tempo se torna, sem dúvida, impotente. Seria uma excepção à regra ou uma regra para a qual não atribuíam uma excepção?

  Pouco a pouco, a vida foi retomando as suas rotinas. A estrutura que antes tinha albergado uma feliz relação tornara-se pouco mais do que uma espécie de aquartelamento ao príncipe e seus leais servidores. A alegria desaparecera das janelas. Os rituais marciais substituiriam as do lar. Subtis vozes masculinas falando num tom baixo e grave, pareciam guardar um túmulo.

  As notícias mais recentes davam conta da próxima morte de seu pai. Estava a um passo do trono. Teria de voltar ao paço que sempre detestara e às companhias que sempre evitara. Os amigos acompanharam-no. Estranhavam algumas das suas decisões e atitudes mas respeitavam-no e mantinham-se fiéis. Uma espécie de febre parecia persegui-lo. Uma espécie de vingança mascarada de justiça. Subiu ao trono. Ao seu lado, sentou a mulher que tanto amara e que fizera coroar rainha. Desenterrara-a para receber a honra que lhe era devida. Fora e era a sua rainha. Os cortesãos prestaram-lhe a devida homenagem. Os algozes foram perseguidos e mortos.

  A partir daqui, o rei vivia como numa outra espécie de sonho-pesadelo, fazendo o papel que dele esperavam. Dormia com as mulheres que lhe matavam as saudades da amada. Teve outros filhos. Governou o reino, atravessando-o para perseguir todos os que eram acusados de injustiças.

  Foi, ao que parece, um rei querido pelo povo, ao contrário do que se poderia imaginar. O mesmo povo que, numa incompreensão e intolerância total para com a paixão do seu jovem príncipe, se insurgira contra ela tornando-se, indirectamente, cúmplice da injusta e precoce morte.

  O seu filho primogénito, D. Fernando, sucedeu-lhe no trono, tal como o avô previra e o pai nunca colocara em causa, sucumbindo, também ele, a uma paixão atroz.

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Quinta-feira, 11 de Junho de 2009

Inês e o divórcio

- Mãe, é verdade que o pai saiu de casa por causa de mim?

  A mãe de Inês olhou para a pequenita, incrédula. Como é que um ser tão pequeno pode já colocar uma questão daquelas? Tinha apenas três anos! Olhou para o ar desamparado e triste da filha. O rosto largo e moreno sempre alegre, de onde sobressaíam duas salientes maçãs do rosto, as sobrancelhas grossas que emolduravam os grandes olhos castanhos escuros, os lábios estreitos e largos que se abriam espontaneamente para soltarem genuínas gargalhadas revelavam, naquele momento, uma forte tensão emocional… O coração maternal gelou. Onde fora ela buscar semelhante ideia? Já ouvira pessoas comentar, na sua presença, que a última gravidez fora a responsável pelo término da relação do seu infeliz matrimónio. Como é que alguém de fora pode avaliar justamente uma relação? Como as pessoas gostam de falar daquilo que não sabem! Será que alguém, na sua ausência, teria feito algum comentário a esse respeito na presença da criança? Sentiu a revolta crescer dentro de si, por momentos. Quem fizera uma maldade semelhante? Já imaginava a cena: uma pessoa em casa da avó materna de Inês, falando incorrectamente do passado e a criança, na altura a brincar nas imediações, acompanhara a conversa dos adultos. Como viram a criança distraída a brincar, pensaram que ela não acompanharia a conversa. Como os adultos estão enganados acerca das crianças! – pensou a mãe – Que maldade!

  Lutou desesperadamente contra o sentimento de revolta que se apoderara dela e acalmou-se para poder falar com a filha que esperava ansiosamente, a aflição a balançar-lhe os olhos. Olhou, ternamente, aquele ser pequenino que falava num fio de voz. Desceu ao tamanho da pequena, olhando-a directamente nos olhos, enquanto lhe segurava as rechonchudas mãos pequenas, sorrindo.

  - Não, não é verdade. A história está errada. O pai não saiu de casa por causa de ti, nem de ninguém. Eu vou contar-te tudo, para que tu nunca mais tenhas dúvidas acerca disso, está bem?

  A menina suspirou aliviada. Acenou afirmativamente, enquanto se preparava para escutar o que a mãe tinha para dizer. Estava muito interessada na história que instalara no seu coração um sentimento de culpa que lhe consumia a alma como um monstro devorador e cruel. Mal conhecia o pai. Não o visitava como os irmãos faziam. Ele não a levava porque era ainda muito pequena para estar longe da mãe e ela também nunca quisera ir. O único sentimento que a invadia era a saudade originada pela ausência dos irmãos mais velhos que adorava. Perguntava, muitas vezes, quando é que eles regressariam. Como explicar o tempo a crianças tão pequenas? A mãe falava da noite e do sono e da manhã que se lhe seguia, mas, embora esforçando-se por seguir a explicação dada, a gaiata perdia-se algures entre sonos e refeições. E a pergunta repetia-se constantemente. Sentia-se segura sentindo a família unida.

  Inês poisou os seus olhos nos da mãe, esperando o começo da narrativa. A mãe sorriu ao evidente interesse da filha! Era importante para ela saber a verdade. Nunca lhe passaria pela cabeça mentir aos filhos fosse porque motivo fosse, mesmo que isso implicasse algum sofrimento. Jamais o fizera e não era ali que iria começar. Nem mesmo para proteger os filhos o faria. Talvez porque nunca acreditasse na mentira. Sempre defendera que só a verdade, por mais dura que fosse, libertaria o ser. Naquela situação, tratava-se de destruir uma mentira hipócrita e injusta que envenenara escusadamente o espírito da sua filha mais nova. Como fazê-lo de forma a que ela compreendesse tudo? Era importante que isso acontecesse. Urgente mesmo, dado o estado emocional em que a mentira a prostrara. Só havia uma maneira – contar a história como se de um conto de fadas se tratasse. Assim fez.

  - Sabes – começou lentamente a mãe – o pai e a mãe já não gostavam um do outro. Andavam tristes porque não eram felizes um com o outro. – a voz saía triste, procurando mais que a menina intuísse do que compreendesse – Então, um dia, o pai encontrou a Susana e gostou muito dela e ela gostou muito dele.  – o tom de voz, aqui, alegrara-se de esperança – Os dois eram muito felizes juntos, brincavam, riam muito e resolveram ficar juntos sempre.

  - E tu, mãe? – perguntou a pequenita.

  A mãe sorriu alegremente e sentou-se pegando nela ao colo, sem nunca despregar os seus olhos dos da filha.

  - E a mãe é muito feliz com os seus três meninos! – concluiu alegremente.

  A mãe viu os olhos da garota iluminarem-se. O peso cedera lugar ao alívio. A pouco e pouco a alegria de uma narrativa com um final feliz tomou conta dela. Olhou a mãe entusiasmada. Da pequenina boca saiu a história recontada na sua meiga voz de criança. A alegria contida nela apaziguou o coração da mãe. Tinha desfeito a má impressão que a mentira causara na filha. Ouviu tudo sem interromper, seguindo o entusiasmo da menina que crescia à medida que a história se aproximava do fim.

  Os bracitos apertaram-se à volta do pescoço da progenitora.

  - Obrigado, mãe. – a voz retomara a serenidade própria de alguém que acabara de recuperar o seu equilíbrio emocional.

  Voltou-se para os brinquedos que esperavam por si, na sala da avó.

  Lá fora, as nuvens cediam lugar ao sol que as empurrava numa tentativa desesperada de perceber o que se passava com a menina, sempre tão alegre e descontraída. Espreitou pela janela larga da sala. A vida parecia ter retomado a serena rotina. Ficou intrigado e aborrecido por perceber que já não iria a tempo de compreender o que se passara naquela sala, mas feliz porque tudo havia terminado bem.

 

 

publicado por fatimanascimento às 12:38
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Sábado, 14 de Fevereiro de 2009

Inês e a Sombra

Inês parecia incomodada. Trocava de posição sempre que podia, escondendo-se, umas vezes, atrás da mãe, dos irmãos ou dos avós maternos, e até dos restantes familiares, torcendo sempre o pescoço para olhar por cima do ombro, numa aflição que já a incomodava. Como era a única criança, a mãe, que já notara o desassossego da filha mais nova, começava a incomodar-se com tal inquietação. A avó materna, que já se incomodava com as voltas da neta mais nova, e tomando-as como rebeldia, deitava-lhe olhares zangados, acompanhados de uma boca retorcida em sinal de ameaça. Esta atitude pouco amistosa em nada contribuiu para sossegar a pequena, antes pelo contrário, para além do incómodo que ela já tinha, Inês via-se agora obrigada a enfrentar o problema da incompreensão e hipotética agressão física por parte da matriarca da família. Os restantes familiares, já começavam a acusar alguma fadiga devido ao tema de conversa que se enrolava, sem que encontrassem o tão almejado final, que fosse da satisfação geral. Depois, os grupos gerados pela discórdia, estavam longe de encontrar fosse que solução fosse, só alimentavam o desentendimento familiar.

  Inês parou por momentos, cansada de tanto movimento. Lá no céu, o sol brilhava intensamente, dourando toda a paisagem, amenizado pela brisa fresca. O calor fazia Inês suar por baixo do seu boné de pala comprida.

  Integrada no improvisado grupo, a mãe conversava atentamente com os outros. Parecia haver um problema que merecia toda a atenção familiar. Inês estava excluída e mantinha-se à volta do grupo, como um satélite à volta do seu planeta. A mãe não saberia descrever melhor a situação da filha. Já se apercebera de tudo, esperava só o momento oportuno para poder discretamente sair daquele foco de atenção e poder dar a atenção que a filha precisava. Já percebera que algo a incomodava. Já percebera a atitude severa da avó da criança que, como sempre, não entendera que havia um problema que incomodava a garota. Inês olhou para a mãe desesperada. A mãe sorriu-lhe para a tranquilizar. Ela deixou-se ficar quietinha, por momentos, encostada à mãe, procurando naquele leve aconchego toda a serenidade e protecção que necessitava, naquele instante. A mãe poisou a sua mão em cima do seu pequeno e esguio ombro, num sinal de protecção que a filha visivelmente pedia. Olhou-a nos olhos, naquela cumplicidade que as duas tinham, desde sempre. A miúda lançou um olhar cansado onde se lia uma mistura de angústia e cansaço. A mãe entendeu que chegara a hora de se afastar daquele assunto que, por muita vontade que tivesse, não tinha resolução. Faltava o mais importante – boa vontade.

  Afastou-se do grupo familiar, mantendo o braço à volta dos ombros da pequenita. A mãe conduziu-a para um lado do parque, delimitado por um muro de pedra. A pequena pareceu hesitar por momentos, avaliando a paisagem à sua frente. A mãe parou olhando-a sem compreender. A pequenita ergueu os olhos apreensivos que tocaram os olhos serenos da sua progenitora. A pequena encheu o peito de ar e decidiu-se a continuar. Sentaram-se ambas num muro baixo, ladeado de árvores altas, cuja idade se perdia no tempo. A mãe encarou a pequenita:

  - Que se passa filha?

  - Tenho medo. – respondeu a pequena.

  - Medo de quê? – perguntou a mãe sem compreender.

  - Disto! – murmurou a miúda num gesto evasivo.

  A mãe continuava sem compreender.

  - Esta coisa escura! – explicou a garota já desesperada com a mãe que demorava a compreender, indicando a paisagem próxima que as rodeava. A mãe olhou em volta procurando o alvo escuro mencionado pela pequenita.

  A gaiata, já sem paciência, levantou-se e pôs-se ao sol.

  - Isto! – indicava ela, apontando para o chão, atrás das suas costas. – Persegue-me por todo o lado onde vou!

  Atrás de Inês desenhava-se a… sua sombra! A mãe olhou para a pequenita que tinha as lágrimas nos olhos.

  - Inês, essa é a tua sombra! Quando estamos ao sol, todos nós fazemos sombra. Repara nas árvores… essa mancha negra que vês desenhada no chão, não se mexe, não tem vida! É só a sombra das árvores.

  A pequenita, embora mais descansada, parecia ainda não dominar o assunto. A mãe procurou outra explicação mais simples.

  - O sol só tem uma função: iluminar a terra. Como o seu trabalho, embora importante, é monótono, e então para evitar que ele adormeça e queime a terra, com os seus raios quentes, ele vai divertindo-se a desenhar as formas das pessoas, das árvores, das casas, dos camiões… que encontra. Estás a ver? O papel onde ele desenha é o chão, o lápis é o tom cinzento que ele dá a tudo quanto encontra…

  A mãe observou o efeito das suas palavras na sua pequenita. Esta parecia mais sossegada.

  - Sempre que eu vejo uma sombra ela não faz mal? – interrogou a garota.

  - Esta sombra não faz mal a ninguém. Sabes porque nos sentámos aqui, aproveitando a sombra das árvores? Para estarmos mais protegidas do calor. Vês como está mais fresquinho aqui à sombra? Sentes a aragem fresquinha? A sombra é uma ajuda sempre que temos calor e o sol está forte. Olha para a avó… Vês como ela está cansada e já tirou o casaco? Ela está cheia de calor. Não tarda nada, está aqui ao pé de nós, à procura da sombra da árvore!

  - Olha, mãe, lá vem ela! – riu-se a pequena. A mãe juntou o seu riso ao da pequena.

 

 

publicado por fatimanascimento às 14:33
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