Inês levantou-se cedo. Fim-de-semana. Saltou da cama, calçou as pantufas e vestiu o robe ainda ensonada. Olhou para o rádio-despertador. Marcava sete horas! Acordou a voz dirigindo-se à cara ensonada da mãe e murmurando:
- Vou fazer-te o pequeno-almoço!
Desceu as escadas em silêncio. À sua volta a casa ainda dormitava sob a luz fraca e crua da madrugada. O dia desenhava-se chuvoso e cinzento igual aos da semana que findara. Da cozinha chegavam os ruídos das loiças e dos talheres que se mexiam uns contra os outros sob a autoridade da pequena mão.
A mãe não tinha muita fome. Como estava praticamente reduzida ao espaço da cama, de onde pouco se mexia, o apetite era nulo. Mas como a oferta tinha sido tão sincera e tão simpática e partia de uma pequenina de apenas sete anos, a mãe não teve coragem de a desencorajar. Sentou-se cautelosamente na cama e procurou as caixas dos comprimidos que estavam empilhadas do lado oposto ao da cama. Tinha de tomar três espaçadamente assim que acordava. O primeiro, um protector gástrico, outro para a alergia e outro para combater as dores que a imobilizavam mas que não resolviam o seu problema de saúde. Sentia-se desanimada, Mas procurava guardar esse desânimo para si para poupar as pessoas que viviam com ela. Sobretudo evitava assustar a pequenita. Era engraçado vê-la, à noite, no papel de mãe em ponto pequeno aconchegando os edredões e o lençol ao rosto sorridente da mãe ao mesmo tempo que lhe dava beijinhos alternadamente na face e na ponta do nariz!
Voltou a deitar-se com cuidado esperando o regresso da pequena aventureira que se afadigava na cozinha dividindo-se entre o microondas e a torradeira. A mãe seguia atentamente cada ruído para ter a certeza de que tudo corria bem e ela não se magoava. Seguiu-se um silêncio só quebrado pela voz da pequena que enumerava mentalmente todos os objectos necessários de forma a não se esquecer de nada!
Daí a pouco, viu-a subir atentamente as escadas evitando algum possível acidente. Olhava para o tabuleiro onde se equilibravam precariamente uma chávena e um prato ao mesmo tempo que tentava recordar-se dos degraus da escada onde colocava ora um pé ora outro. Finda a difícil e vagarosa subida entrou entusiasmada no quarto dizendo na sua clara voz:
- As torradas queimaram-se um bocadinho mas eu tirei o queimado com uma faca e ficaram boas! – explicou.
A mãe não pôde deixar de sorrir à explicação avançada enquanto se levantava com dificuldade e se encostava às almofadas da cabeceira. A perna foi devastada por uma espada de dor. O seu rosto contraiu-se. Não conseguiria aguentar-se muito tempo naquela posição. Olhou para o tabuleiro: uma chávena com leite morno, duas torradas de carcaça e um guardanapo em cima do qual descansava uma colher de sobremesa!
A mãe despachou-se a comer para evitar a dor que ameaçava tornar-se mais forte! Olhou o pão que não tinha vestígios das desagradáveis queimaduras negras. Comeu as duas torradas empurrando o pão com o leite sempre tentando encontrar uma posição que diminuísse consideravelmente a dor que se tornava cada vez mais insuportável. Acabada a refeição, colocou o tabuleiro ao seu lado gemendo baixinho de dor. Agradeceu alegremente à filha que pegava no tabuleiro e o colocava num sítio seguro muito contente com a sua iniciativa.
- E tu, já comeste?
Inês acenou afirmativamente.
- E o que é que a minha menina comeu?
- Ora, o mesmo que tu! – respondeu com vivacidade encarando a mãe – Leite com chocolate e torradas!
Subitamente uma voz ensonada, vinda do quarto do irmão da menina, elevou-se no ar:
- Inês, traz-me também o pequeno-almoço à cama!
- E a mim também! – pediu uma risonha voz ensonada do quarto oposto.
Ouviu-se a voz da pequena indignada:
- Olha, vão vocês preparar! Vocês não estão doentes. A mãe é que está!
Voltou-se para a mãe à procura de apoio. Esta piscou-lhe um olho risonho e cúmplice.
- Estão a brincar contigo! – sussurrou encostando o indicador aos lábios.
Sentou-se depois junto da mãe, evidenciando um ar importante que na realidade não sentia e começou a ver os desenhos animados deitando uma olhadela de vez em quando à mãe que, ao seu lado, abria um livro e começava a ler para passar o tempo sem desesperar!
O tabuleiro levá-lo-ia mais tarde quando descessem todos para almoçar.
Inês era pequenina quando colocou esta questão. Teria três anos no máximo. Talvez nem tanto. Foi a primeira de algumas que viria a fazer posteriormente. Tendo sido uma querida e grande surpresa, a mãe estranhou a questão. É a mais nova da família, tem onze anos de diferença do irmão e oito da irmã. Todos sempre lhe haviam dispensado muita atenção e carinho. Ainda assim, ela colava-se à mãe durante os momentos de pausa e repetia a questão como se quisesse assegurar-se da veracidade dos sentimentos ou porque tivesse necessidade de ouvir várias vezes da boca da mãe ou porque necessitasse de mimo. A mãe abraçava-a, beijava-lhe as madeixas escuras que lhe chegavam aos ombros. Mas parecia não chegar. Periodicamente, lá vinha a mesma questão nascida não se sabia bem do quê.
Uma noite, estavam as duas recostadas na cama da mãe, quando Inês voltou a questionar a mãe sobre os seus sentimentos por ela. A mãe percebeu que era sério. Inês tinha de perceber o quanto era importante na sua família, não sabia bem porquê. Sempre fora a pequenina, a menina de todos. Havia sido criada pela mãe e os irmãos com a ajuda preciosa dos avós.
A mãe fez uma pequena incursão no passado. Não fora fácil. Ficara grávida na altura exacta em que se estava a separar. Os enganos haviam sido a parte que a marcara mais. O muro emocional desmoronara-se. Sentira-se impotente perante o novo rumo da sua vida. Tinha dois filhos e vinha outro a caminho. Como seria a vida dali para a frente? Conseguiria enfrentar sozinha o mundo e tudo o que de difícil ele tem? Duvidara de si. Não duvidara nunca da vida que crescia dentro de si. Foi ao médico que confirmou a existência da vida dentro de si. Dada a idade avançada deveria fazer um exame para saber se estava tudo bem com o bebé. Não quis. Não conseguia aguentar outra perda. Assumiria o pequeno ser tal como viesse ao mundo. Passaram-lhe pelo pensamento algumas ideias aparentemente assustadoras que acabara sempre por suavizar. O amor suaviza tudo. No amor não há medo!
Nesse momento, a mãe decidiu que arranjaria uma história que a levasse a ter noção do amor da família por aquele pequeno ser. Pensou um pouco, enquanto abraçava carinhosamente a sua pequenina. De repente, lembrou-se de uma expressão do seu pai, já velhote, que parecia perdido num país longínquo, enquanto repetia para si em voz alta “Esta menina não tem culpa de cá estar. Esta é que não tem mesmo culpa de cá estar!” Esta fora uma expressão que marcara profundamente a mãe de Inês. Apercebera-se, sem esforço, da importância daquela menina. Surgira por acaso. Não fora planeada, contudo a mãe nunca duvidara em acolher aquela milagrosa prenda da vida. Então, começou a falar baixinho, enquanto a apertava contra si:
- Sabes gosto de ti desde que tinhas este tamanhinho assim. – e juntava o dedo polegar ao dedo indicador para a fazer entender.
Inês observou-a encantada. Juntou por sua vez os dois dedos da sua pequena mão imitando o gesto da mão.
- Não – observou – tu gostas de mim desde que era deste tamanhinho. E estreitou ainda mais o espaço entre os dedos.
- Nem mais! – concordou a mãe – Desde que soubemos da gravidez, isto é, que tu estavas dentro da minha barriga todos nós nos apaixonámos pela ideia – eu, a mana e o mano. Sabes o que fazia a mana? Punha-se debaixo do lençol e cantava baixinho junto da barriga para que tu conhecesses a sua voz. Outras vezes, contava-te histórias sobre nós. Adorou a ideia de seres uma menina!
- O Bruno não. Queria um menino para o ensinar a jogar à bola! – sentenciou a pequena.
- É verdade. O Bruno não sabia muito bem como brincar com uma menina. Mas, depois, habituou-se de tal forma à ideia, que passou a adorá-la. Observava as meninas que encontrava e passou a achar-lhes muita piada. Mas há mais… - acrescentou num tom misterioso. Inês aconchegou-se mais à mãe – Sempre que tinha de sair para tratar de algum assunto e não demorava muito tempo, os manos ficavam contigo e tomavam conta de ti. Uma vez, demorei-me mais um pouco e cheguei a casa preocupada. Fiquei admirada ao observar a mana a mudar-te a fralda e a limpar-te o rabito, enquanto o teu irmão, apavorado, tinha medo que ela fizesse alguma coisa mal que te pudesse prejudicar. Quando cresceste e começaste a andar, andavam sempre atrás de ti com medo que caísses. Um dia, quando fomos a um restaurante, tu quiseste experimentar uns baloiços que lá havia. Era uma espécie de túnel com algumas escadas e um escorrega. Tu desembaraçavas-te bem. Ainda assim os manos, enquanto comiam, observam-te com medo que os outros meninos te pudessem magoar, empurrar. Aconteceu isso uma vez e os teus irmãos levantaram-se imediatamente da mesa para irem pôr ordem no parque. Estavam sempre atentos não fosse algum deles voltar a empurrar-te. Como eras muito meiga e não te sabias defender, faziam isso por ti.
A partir dessa altura, a questão muitas vezes repetida, fora substituída pela brincadeira dos dedos. Inês aprendera que desde muito cedo, desde que não passava de um pequeno ponto na barriga da mãe, fora, desde logo, desejada e muito amada, apesar das contrariedades da vida por que passara. Desde então, parecia mais segura de si e nunca, nunca mais voltara a questionar a mãe sobre tal assunto.
Segunda-feira. A tarde quente acompanha o sol na sua viagem circular. Ao contrário das outras sempre cinzentas, húmidas e escuras, este dia trouxe um sabor prematuro a Primavera. Na rua calma, esvoaçam pequenos pássaros numa dança exótica. Os eucaliptos dançam ao sabor da brisa e cantam louvores ao astro destapado pelas implacáveis nuvens. É um dia especial. As paredes, de onde escorrem desagradáveis tintas azuis, abrem os braços ao ar queimado pelos raios solares. Da casa ao lado, o silêncio marca a ausência de seres mergulhados em tarefas distantes.
São duas horas. A campainha da escola marca o fim do matinal período escolar. Inês corre para o enorme pátio em busca do largo rosto engelhado da avó materna. Encontra-o do lado de fora das grades junto ao rosto fiel e submisso do avô que pergunta constantemente quem é que anda naquela escola. A esta pergunta a avó vai respondendo com alguma impaciência. A doença faz esquecer o avô. A sua memória mais recente não retém informação, funciona como um saco vazio. A resposta entra no cérebro para logo fugir por um qualquer sítio mágico.
Inês traz às costas a mochila com o material escolar. É pesada mas não se importa. Trocou-a há dias pela sua pasta de rodinhas da qual já está saturada. Imita os irmãos ou as colegas ou talvez esteja farta de arrastar atrás de si um peso que lhe limita os movimentos. É pesada mas não se importa. Prefere assim. E não há argumento que a possa demover.
Apanharam o autocarro que os levará até metade do trajecto que leva até casa. O autocarro não está muito cheio, mas os poucos lugares sentados estão, quase todos, ocupados. O único banco livre é ocupado pelo avô que tem muita dificuldade em se equilibrar nos saltos e curvas desenhados pelo autocarro. Inês observa o ambiente à sua volta. A maioria das pessoas que viaja no pequeno meio de transporte é idosa. Algumas admiram a paisagem como se a avistassem pela primeira vez ou como se tivesse sido atacada por uma alteração muito curiosa ou sensacional. Duas idosas não param de tagarelar referindo-se a eventos e pessoas desconhecidas. Inês, de pé, junto da avó, tenta equilibrar-se o melhor que pode. Subitamente, sente os olhos das duas conversadoras poisarem na sua pequena estatura séria. Desconfiou. Não gosta de pessoas que falam de outras. Iriam referir-se agora a si? Desviou os olhos timidamente. Uma voz alta sobrepôs-se ao ruído do motor do transporte.
- A menina tem uma mochila muito pesada às costas. Só faz mal à coluna.
A outra concordou, tendo ido logo buscar uma quantidade de desgraças de que tivera conhecimento durante toda a sua vida.
Inês detestou as duas senhoras. O que é que elas tinham a ver consigo?
Desviou a cara para a face da avó. Em cheio! Era ainda pequena mas já percebia que certas afirmações feriam a dignidade da avó. Iria arranjar discussão por aquilo. Mergulhou o olhar duro nas duas impertinentes senhoras.
Saíram na primeira paragem aguardando calmamente a chegada do outro que os levaria até ao fim da linha. Não demorou muito. A avó, num gesto brusco, puxou a pesada pasta das costas da neta e colocou-a bruscamente no chão. Uma ameaça de discussão perpassou o ar impregnado de água. Com a visão nublada, Inês sabia que aquela era a reacção consequente da observação realizada pelas senhoras. Não haviam dito nada de novo. Toda a gente sabe que os pesos fazem mal ao esqueleto humano e que as pastas dos meninos são muito pesadas, fora o tom utilizado que ferira os sentimentos da avó. Ficou quieta e determinada. Continuaria a carregar o pesado saco até que lhe apetecesse. Todos faziam o mesmo. Não havia volta a dar ao assunto. A não ser que deixasse algum material em casa… Era parvoíce. Resolveu pensar noutro assunto. Estava ansiosa por chegar a casa e fugir daquela irritante chuva que os mergulhava a todos numa disposição terrível. E em casa estava a mãe que a ajudaria nos trabalhos de casa, logo que acabasse de almoçar. Era bom ter a mãe em casa, apesar de estar doente. Inês sentia-se impaciente.
O autocarro parou afastado do passeio evitando molhar as pessoas que rodeavam cuidadosamente o inesperado lago artificial, comodamente alojado no alcatrão.
O calor desprendido do veículo reconfortou-os. Este estava mais vazio e havia espaço para se sentarem todos. Inês ocupou um lugar junto do vidro enquanto os avós se sentavam do outro lado do corredor, na mesma fila. Agora era um instantinho!
Na nacional, as pessoas afastavam-se cuidadosamente para a berma da estrada permitindo aos transportes cruzarem-se facilmente, sem correrem o risco de serem apanhadas.
A casa da Inês fica fora do centro da localidade onde vive. Só há pouco tempo a Câmara disponibilizara transporte capaz de levar as pessoas dos arredores até à cidade. Acabara-se o isolamento. Da paragem até ao seu acolhedor lar, teriam de caminhar uns escassos trezentos metros sobre um passeio largo.
Numa corrida ligeira, protegida pela sua longa capa vermelha, a menina depressa tomou a dianteira para abrir o portão e a porta de entrada.
Descalçou as botas e subiu ao primeiro andar para abraçar a mãe e contar-lhe as novidades, enquanto os avós se instalavam no piso inferior arrumando peças de mercearia trazida do carrinho das compras.
Vestiu o fato de treino e voltou a calçar as pantufas. Pendurou a roupa na cadeira e sentou-se na cama ao lado da mãe.
Retirou o caderno da pasta e o estojo. Trazia trabalhos de casa de Matemática. Está a aprender as tabuadas do dois, do três, do quatro e do cinco. As contas com transporte são também um grave problema para si. Como é muito distraída, esquece-se sempre dos números que vão de trás na adição e na subtracção. A mãe está a ajudá-la. Divertem-se muito juntas. Se se enganam riem-se muito e voltam a concentrar-se na matéria estudada.
O Avô, a certa altura, incentivado pela avó, juntou-se-lhes. Já tinham ultrapassado a fase das contas, estavam agora a tentar memorizar a tabuada. O avô sentou-se na cadeira disponível aos pés da cama, virado para elas. Estava muito atento ao que diziam. Subitamente, a mãe lembrou-se de o integrar na brincadeira afastando-o do seu mutismo. E começou a brincadeira da tabuada. Quando Inês não respondia, o avô, com a rapidez de uma calculadora, respondia correctamente a todas as questões. Inês, mais atrasada virava-se admirada para o seu idoso avô. Espertas, as duas experimentaram toda a tabuada e… ele acertou em todas. Se Inês o tentava enganar, na brincadeira, ou se enganava, ele respondia prontamente que era mentira corrigindo de seguida o erro.
Passados uns instantes, a avó, alertada pelo alarido dos risos e das palmas batidas ao sucesso do idoso, juntou-se-lhes admirada com a habilidade do marido. A doença ainda não matara a sua memória mais longínqua. Pelo menos não atingira ainda a escolar.
- É bom saber a tabuada e responder assim depressa – observou Inês admirada.
- Para tal – respondeu a mãe – terás de a repetir muitas vezes até a saberes.
Inês ficou pensativa. Se fosse sempre como naquela tarde, até que seria divertido aprender a tabuada. As contas eram divertidas!
(A Harold Pinter)
Era uma vez uma Nação Grande. A Nação Grande pediu ajuda a outras nações para combater outras. Estas nações combatiam-na e às forças suas aliadas, mostrando o seu desagrado pelo seu envolvimento na sua política interna. Como todas as partes tinham os seus aliados, uns apoiando abertamente a Nação Grande e outros apoiando silenciosamente as outras, a guerra alastrou-se para várias frentes. E, num ápice, todo o mundo ficou em guerra. Mas a Nação Grande não se importou. Tinha mais armas do que o resto do mundo e as mais poderosas. E tinha os seus aliados também fortemente armados com as armas que lhes haviam vendido! Tudo estava controlado! As réplicas aos seus desmandos eram poucas e quase inconsequentes, pois as baixas nas suas tropas eram poucas ou nenhumas! Depois, como continuasse a ter na sua posse o fabrico das armas mais mortíferas, os seus líderes começaram a ficar mais gananciosos e começaram a olhar para os seus aliados como lobos esfomeados. “E se… - interrogavam-se. E mal ainda tinham pensado começaram logo a planear e a agir. Continuavam a ser os mais poderosos, pois tinham sob o seu controlo as piores armas, que o mesmo é dizer, as mais destruidoras, e lançaram-se confiantes ao novo empreendimento. Chegados a uma altura, os mortos eram tantos que os sobreviventes não tinham mãos para lhes darem um honroso túmulo, depois da breve cerimónia fúnebre. O medo imperava! Olhava-se por cima do ombro constantemente, com a certeza de que estavam a ser vigiados! E olhavam uns para os outros com desconfiança. Quais seriam os espiões infiltrados? Haviam decerto informadores entre eles! Tinham provas disso! Haviam-lhes chegado informações que só com esta explicação as teriam conseguido! O pânico de serem apanhados devorava-os constantemente e só a grande determinação e a devoção à causa o suplantavam!
Semeado o clima de terror, a Nação Grande sentou-se a descansar deixando os seus militares, a polícia secreta e as suas potentes armas de vigia. Não havia nação alguma que erguesse um exército capaz de vencer o seu! Teriam, pelo menos, de esperar várias gerações até conseguirem fazer-lhe frente em termos humanos; quanto às armas seria improvável que alguém, alguma vez, a igualasse. (Tinha ganho em todas as frentes!) Continuava a inventá-las, a fabricá-las e a arrumá-las em enormes armazéns, sempre prontas a serem experimentadas ou utilizadas sobre os insurrectos das nações submetidas pela força! E havia a arma certa para c Ada situação específica! Isto para já não falar das fábricas de seres humanos que alimentavam as fileiras dos seus intermináveis exércitos! Eram criados para a guerra e só conheciam essa realidade. Quando não estavam em guerra, vigiavam os povos das nações insurrectas e agiam conforme a lei que lhes havia sido inculcada – a força! Recorriam a todos os velhos e sempre actualizados métodos conhecidos (não conheciam a compaixão) aliados da violência para a qual tinham sido criados. Com o mundo assim controlado, a Nação Grande tornara-se uma nação cada vez mais forte e omnipresente. A sua vontade justificava os meios!
Dentro das suas eliminadas fronteiras, a população assistia impotente aos seus feitos realizados a uma velocidade estonteante, de forma distinta: enquanto uns rejubilavam com as suas vitórias sobre as outras nações (sem se importarem com os meios envolvidos), outros assistiam a tudo incrédulos! Começaram por se manifestar nas ruas insurgindo-se contra as invasões e os meios empregues, de toda a nação, não se revendo nas acções levadas a acabo pelos seus líderes! Nem queriam acreditar que todas as pessoas eleitas não faziam grande diferença entre si! Era como se vestissem uma imagem que em nada correspondia à sua forma de pensar! Ninguém compreendia o que estava a suceder! Também não compreenderam quando, nas mesmas ruas, a par das suas manifestações haviam outras contra-manifestações orquestradas por conterrâneos apoiantes da política dos dirigentes! O exército só tinha uma função: preservar a ordem! Assim, desceu a violência sobre uns e outros! Afinal, era a outra lei que, a par da violência, tinham aprendido! Os representantes da Nação Grande já não precisavam de apoiantes só de ordem! E os membros do exército, desligados de qualquer laço afectivo ou de parentesco, realizavam satisfatoriamente essa função!
As pessoas ficaram sujeitas à rotina que as obrigava a ficar em casa de onde saíam só para trabalhar! Nunca, até ali, haviam sofrido tamanha afronta! Que se passava? “Eram cidadãos de direito da Nação Grande!, pensavam indignados os que não concordavam com a política dos poderosos governantes. Os outros, os apoiantes da política expansiva da Nação Grande nunca haviam sido tratados daquela forma! Antes pelo contrário! Sentiram-se ultrajados e planeavam agora entre si formas de vingança contra aqueles que haviam apoiado antes. Serem tratados como os cidadãos das nações submetidas pela força?! Onde já se vira? Nunca nos anais da História da Nação Grande houvera registo de tal ultraje! Haveriam de esperar pelas próximas eleições… ou não?! Exigiam desculpas da parte daqueles que haviam eleito!
Estes riram-se com vontade! A ligação entre eles e o povo terminara logo após as eleições e nem percebiam isso! Nem desculpas nem eleições! Já não precisavam deles! A lei agora era igual para todos os cidadãos do mundo! Toda a população da Nação grande ficou estarrecida! Os seus apoiantes empalideceram de raiva. “Já não reconheciam os amigos? Que se fizesse uma coisa daquelas aos outros ainda se tolerava, mas a eles?!”, diziam indignados. Outros pensavam: “Como poderiam ter eleito pessoas como aquelas? Pareciam tão diferentes aquando das suas campanhas eleitorais! Teriam sido contaminados por uma estranha febre politica? Desde quando? Como? Porquê?”, diziam aturdidos.
Passada a surpresa inicial, e já de cabeça fria, começaram a engendrar meios para acabar com aquela injusta situação. Embora a palavra justiça não significasse o mesmo para ambas as partes – para os surpreendidos tinha um sentido mais abrangente para a os indignados apoiantes tinha um sentido mais restrito – resolveram que tinham de terminar com aquela situação! Foi então que perceberam que estavam ao nível das populações das outras Nações – não tinham meios que se pudessem equiparar aos dos líderes da Nação Grande. Alarmados, pensaram nas dificuldades atravessadas pelas populações das outras nações apelidadas de “terroristas” mas que mais não eram o que pessoas que se recusavam a aceitar aquela situação de submissão e que lutavam pela reposição de uma ordem diferente. Muitos já tinham morrido em confronto, outros haviam sido capturados pelos braços intermináveis e omnipresentes do exército da Nação Grande para serem interrogados e torturados de forma a convencê-los a falar, que o mesmo é dizer a denunciar todos aqueles que faziam parte da alegada organização terrorista! Embora as nações se ajudassem pouco ou nada conseguiam contra o todo poderoso exército da Nação Grande. As outras nações não passavam de meras explorações onde trabalhavam os povos revertendo grande parte do que produziam para alimentar esse pesado exército e as necessidades da Nação Grande para quem tudo era pouco no sentido de se manter na supremacia. Esta reinava o mundo sob o peso do terror a que submetia todos os povos das outras nações em nome de grandes ideais como terminar com a construção de armas de forte destruição e a protecção do seu espaço. Basicamente a ideia resumia-se a uma frase – atacar para se defender! Só que estes ideais eram usados indiscriminadamente contra todos os habitantes das nações de todo o mundo! Cada nação perecera sob o peso desses grandes ideais! E assim governava o mundo! Todos se lembravam dos falsos pretextos que os levava a intervir militarmente ou de outra forma nas diferentes nações e que agora se viravam contra a sua própria população. E não era fácil inverter a situação! Seria, pensando friamente, se não impossível quase impossível. Mas havia uma arma com a qual não contava a Nação Grande – a inteligência humana! Utilizariam esta arma contra a força brutal do aparelho governamental! Não era isso que faziam os povos das outras nações?! Sem grande sucesso, era verdade, mas não desistiam!
“Como resolver uma situação destas sem recorrer à violência?”, interrogavam-se os surpreendidos, mais sensatos, que punham um travão aos indignados apoiantes que manifestavam enraivecidamente a sua indignação. “Afinal, eram compatriotas seus e também teriam uma razão para utilizarem quando chamados a ela!”, continuavam eles.
Os ultrajados opuseram-se. Não acreditavam nos bons sentimentos! Não haviam os dirigentes estatais traído os seus apoiantes? Não falava essa atitude por eles? Que mais provas queriam os surpreendidos da sua má vontade?
“Sim, talvez”, concordaram os sensatos “mas haveria que tentar! Poupar-se-iam muitas mortes de parte a parte! Os ultrajados indignaram-se mais uma vez. Porque haveriam de ter compaixão por uns fulanos que haviam sido fabricados e que nem compaixão sentiam por nada nem ninguém? Afinal, não tinham laços de parentesco! Haviam sido criados por laboratórios científicos e criados pelo aparelho dos governantes da Nação Grande! Era contra eles que se bateriam! Eram autênticas armas aliadas as terríveis bombas destruidoras das massas humanas. Para as populações atingidas pelas terríveis armas eram precisas três gerações (ou mais!) para modificarem os efeitos naqueles que, havendo sobrevivido a elas, não tinham ficado imunes aos seus efeitos! Aqueles seres que compunham os exércitos nada tinham de humano a não ser a aparência, era claro!
A outra metade resolveu tentar, ainda assim, a conversação aberta e presencial com os dirigentes. Elegeram então um representante, ambos membros das duas diferentes facções da população da Nação Grande. Um, que era reconhecido como apoiante governamental, outro pela sua capacidade de persuasão e sensatez. Apresentaram o seu pedido e lá conseguiram que agendassem um dia e uma hora para o diálogo entre os dois lados: governantes e cidadãos. Não havia sido fácil. O primeiro argumento utilizado contra essa entrevista fora a existência de representantes eleitos por esses círculos regionais para falarem com eles e estes é que deveriam dirigir-se aos governantes manifestando-lhes as suas ideias. Aqueles haviam cedido só à possibilidade de poderem estar perante outros caminhos em que não haviam pensado. A curiosidade aliada à ganância de poderem estar na posse de um segredo com que não haviam contado, vencera.
Chegado o dia, os governantes viram-se perante duas pessoas banais (nem sequer estavam bem vestidos!) que lhes falavam de uma outra ordem. Esta era totalmente diferente daquela em que viviam e na qual já haviam vivido muitas nações grandes e pequenas e que agora lhes calhava a eles experimentar. Falavam de liberdade de escolha, de responsabilidade, de transparência, de pluralidade… onde todos sabiam exactamente o que fazer sem a presença de polícias ou de exércitos.
Os dirigentes riram-se e arranjaram mil e um argumentos para arrasarem os da “oposição”. Não havia lugar para pessoas que não pensavam como eles! O mundo lá fora não era nem nunca seria como pretendiam. Era precisa a ordem para evitar o caos! Era nisso que tinham experiência! Era isso que estavam a fazer! Deveriam estar agradecidos! Os argumentos iam e vinham sem que ninguém se ouvisse ou tentasse compreender. E para mudar era necessário entender!
Acabado o diálogo, ambas as partes se separaram descontentes. Os governantes perceberam que tinham opositores e os outros que era impossível a modificação através do diálogo. Os representantes reuniram-se com os restantes opositores para decidirem o que haveriam de fazer. “Matar os governantes?”, sugeriram os representantes dos cidadãos ultrajados. Não seria difícil encontrar alguém no meio de tantos descontentes!
“Viriam mais” opuseram os sensatos. “a escola era infinita e começava cedo nos movimentos pró-governamentais e levariam gerações a apagar-se, se é que alguma vez se apagaria. Afinal, o que se inculca em criança dificilmente desaparece mais tarde sendo sempre transmitida fielmente à geração seguinte! A não ser que a criança fosse excepcionalmente inteligente e madura para a idade para perceber o que estava certo e errado! Mesmo que a aprendizagem fosse transmitida de uma forma agradável e convicta!”, opunham os sensatos.
Os governantes, que não gostavam de oposições, viessem elas de onde viessem, resolveram colocar os dois suspeitos sob constante vigilância! Como estes começassem a espalhar “propaganda” contra o regime, sofreram inexplicáveis acidentes que limpavam qualquer possibilidade de ligação aos governantes mantendo-se dessa forma intacta a imagem dos governantes da Nação Grande. Esfregaram as mãos de contentes! Problema solucionado! Trabalho limpinho! Como atrás destes viessem outros com o mesmo objectivo, e como já ninguém acreditava nos alegados acidentes, o caso começou a tornar-se publicamente complicado! Às negociações falhadas seguiram-se as temíveis rebeliões. Notícias avançavam a hipótese de haver insurreições que alastravam às grandes províncias da Nação Grande! E estavam a ganhar adeptos!
“Perigoso! Deveras perigoso!” pensavam os senhores do poder. Enviaram os implacáveis exércitos sobre eles! A estes ninguém influenciava! Geneticamente manipulados eram dotados de uma inteligência dita superior para se deixarem influenciar por alguém! Tarde de mais também para se doutrinarem nos novos ideais! Estavam descansados! Surgiram entretanto notícias de deserções em vários exércitos que haviam aumentado significativamente o número de opositores! Outras informações diziam que muitos armazéns haviam sido assaltados e as suas armas poderosas desmanteladas! O pânico subiu nas hierarquias governamentais. Não compreendiam! Não podia ser! Um ser humano normal não teria capacidade para o fazer! Esse acto só poderia ser atribuído aos desertores do poderoso exército e da polícia secreta! Como iriam lutar contra aqueles seres que nem percebiam bem o que eram (pois nunca lhes haviam prestado qualquer atenção até ali) mas de cuja inteligência desconfiavam agora? Voltavam-se as suas armas contra eles! Se tinham compreendido as novas ideias e aderido a elas, como poderiam ter sido tratados apenas como mera mão-de-obra bélica até ali? Onde é que a ciência tinha falhado? Queriam ouvir os cientistas para tentarem perceber contra quem estavam a lutar (mais o quê) para os seus oficiais poderem escolher os meios mais eficazes. Ficaram alarmados com as suas respostas! Não sabiam como controlar “algo” que fora criado por eles?! Era como inventar um veneno sem pensar imediatamente no antídoto!
A polícia secreta fez-se anunciar mais uma vez.
“Mais novidades?”, berraram os governantes desorientados, “Esperemos que sejam boas desta vez!”
Ficaram petrificados e boquiabertos. Estavam a perder terreno! E nem baixas haviam a registar nas fileiras da oposição! Como conseguiam eles tudo aquilo sem derramamento de sangue? Olharam para os cientistas que encolheram os ombros! A mente era algo que ainda não se compreendia totalmente! Havia ainda muito por descobrir! Esta resposta enfureceu os governantes. Só isso? Era lógico que não sabiam e agora estavam a pagar cara a sua ignorância! Não sabiam que na ciência não se podia deixar nada ao acaso? Não tinham como exemplo os colegas responsáveis pela criação das terríveis bombas destrutivas que todos temiam? Resultavam na perfeição!
“Sim”, respondeu um, “mas estão a ser desmanteladas pelo inimigo!”
“Sim, imbecis, as vossas aberrações arranjaram maneira de o fazer! E não sabemos quais as suas capacidades e conhecimentos! ”
“É porque havia uma maneira…”, insistiu o cientista, “os senhores e os outros dos antigos governos não queriam uma espécie superior à raça humana, uma espécie de raça humana aperfeiçoada? Ela aí está! Conseguimos!”
“Sim queríamo-la, mas para nos servir não para nos governarem ou se oporem a nós! E deveriam ser fiéis à nossa ideologia e incorruptíveis a qualquer outra!”
Cruzavam-se impacientes na carpete da grande sala diante dos nervosos cientistas coordenadores do projecto que mais pareciam miúdos de escola apanhados em flagrante.
“Agora o que fazemos?”, interrogou um.
“Não há nada a fazer. Eles não obedecem a padrão algum. Foram feitos à nossa imagem, logo são tão imprevisíveis quanto nós. Ou melhor, havia um padrão que nós lhes inculcámos mas, conseguiram, de alguma forma, ultrapassá-lo!”
“E agora o que podemos fazer?”, insistiu um dos governantes.
“Cabe ao exército as respostas não a nós. Somos meros cientistas”, ripostou o interpelado.
“E incompetentes também!”, vociferou um dos governantes.
Pouco a pouco, a Nação Grande foi tomada pela nova e temida ordem, ou melhor, ideologia que se estendeu depois ao resto do mundo que conheceu, finalmente, a liberdade. Liberdade baseada no respeito e na responsabilidade que levava cada um a uma consciência de si e do próximo, liberta de polícias, de exércitos e de assassínios!
Os governantes nada puderam fazer a não ser renderem-se. Uma nova ordem nasceu e com ela a felicidade humana! Sempre havia uma alternativa… bastava querer!
Fátima Nascimento
30/03/2010
O vento forte pontapeava violentamente as folhas do jornal, que executavam verdadeiras acrobacias no ar. Uma delas chocou violentamente com a esguia figura triste de um rapaz, sentado em cima de um grosso tronco de árvore, completamente alheio ao que o rodeava. Afastou distraidamente a folha, que se manteve colada às suas pernas pela força do ar. Completamente alheado ao que se passava à sua volta, o rapaz jazia imerso nos seus pensamentos. Não era a sua roupa gasta ou o estômago vazio que o atormentavam. Já se habituara a isso. Também não era a solidão a que se votara, devido à incompreensão dos que o rodeavam. Não queria seguir o caminho dos outros, queria encontrar o seu. Começara por se aliar aos companheiros de brincadeiras, em busca da atenção, do apoio e do carinho que não só conhecera enquanto a mãe fora viva. Gostava de jogar à bola com os vizinhos da sua rua, verdadeiros craques da bola, mas que não encaixavam na sua maneira de pensar, sentir e agir. Eles já se haviam dado conta disso mesmo, pelo que não o aborreciam muito. A escola também não era uma grande ajuda. Sempre fora muito distraído e gostara pouco estudar para além do ambiente conflituoso da casa não lho permitir. Mal sabia ler e escrever, embora dominasse perfeitamente as contas simples. Como a folha continuasse a debater-se violentamente contra as suas pernas, o rapaz apanhou-a. Acariciou a folha com os seus tristes olhos castanhos. A fúria da natureza não se comparava minimamente com a guerra que se desenrolava no seu íntimo. O sofrimento estivera sempre presente na sua vida, acompanhando-o desde criança. A raiva desencadeava a revolta, que o levava a rebelar-se contra as imensas situações injustas que experimentara desde sempre e que o faziam fugir e bater com a porta, procurando ambientes mais leves, proporcionados pela vasta natureza que circundava o bairro onde vivia. Dava longos passeios, alheio aos olhares desconfiados, aos passos apressados e à multidão que o contornava, sem reparar nele, e contra a qual chocava ocasionalmente. Ansiava por locais isolados, longe da presença humana. O seu local favorito era a praia. Era ali que atirava a revolta à fúria das ondas, gritando a sua angústia e desespero, e, já mais calmo, procurava a paz que o terreno baldio, ainda despejado de cimento e betão, lhe proporcionava. No seu coração, habitualmente doce, a serenidade regressava algum tempo depois. Não tinha um local que pudesse considerar seu, uma vez que em nenhum encontrava um ambiente favorável, que lhe pudesse dar a segurança, a paz e o carinho que nunca conhecera, e sempre desejara. Estava saturado de injustas palavras duras, tentando inculcar na sua frágil alma defeitos que ele não possuía e ignorando os sentimentos que ele mais necessitava. O apoio encontrara-o sempre na figura esguia e encarquilhada do velho pescador que havia sucumbido à avançada idade. Nada mais lhe restava. Sentia-se desamparado. Não sabia como havia de continuar sem o seu carinho, o seu apoio e a sua amizade. Recordava ainda aquelas tardes quentes de verão, quando o encontrava debaixo da velha árvore, de cachimbo na boca, olhando esforçadamente o jornal amachucado, onde tentava progredir na leitura, juntando esforçadamente as sílabas, e tentando descortinar a manhosa palavra, que resistia à incursão do seu leitor. Ele sempre lhe realçara a necessidade de aprender a ler e a escrever, que encontrara na leitura ocasional do jornal, sempre atrasado no tempo, que lhe levava o filho que trabalhava num dos hotéis da cidade, um refúgio para as suas horas vazias. O ancião sempre realçara a importância da leitura, mesmo quando estava triste ou revoltado com a vida, sempre encontrando nela o refúgio necessário e querido. Ela conduzira-o, irresistivelmente, para mundos desconhecidos e belos, despertando nele sentimentos e ideias que, até ali, ele ignorara. Durante as horas que passava a ler, ele esquecia-se dos seus problemas. O rapaz olhara-o de soslaio, lançando depois um olhar avaliador àquelas folhas desconjuntadas de letra miudinha, que carregavam o mundo dentro delas. Como seria isso possível se os jornais traziam apenas a dor e os problemas do mundo ou falavam de assuntos tão específicos, com umas palavras tão difíceis e desconhecidas que o faziam desistir logo de seguida? Não, aquela não era leitura para ele. Partilhou o raciocínio com o velho ancião, em cujas mãos as largas folhas se agitavam como bandeiras ao vento, devido ao tremor do seu corpo. O velhote concordou com ele. Mas mostrou-lhe uma secção diferente das outras, que ele descobrira, havia pouco tempo, naquele jornal, onde todas as semanas, vinha uma estória publicada, que ele lia sofregamente e cuja continuação ele esperava todas as semanas. Mostrou-lhe o nome do jornal, que se destacava pela largura, o tamanho e a cor das suas letras, contrastando violentamente com as outras. O rapaz olhou desinteressadamente, registando o nome apenas na sua memória visual. Amava aquele ansião que descobrira um dia na praia, estando ele alvoroçado e acabrunhado como lhe sucedia frequentemente. O velhote, observador sensível, esperara o momento oportuno para entabular conversa. Começara com uma observação inteligente sobre o mar, que o fizera desviar a atenção das águas. Sentira-se atraído por aquela personagem que irradiava paz e calor. Entre conversas e ajudas, a amizade fora-se consolidando com o tempo. Desenvolvera-se entre eles uma confiança e um carinho como só duas almas isoladas e autênticas conseguem verdadeiramente atingir. Cada um trouxera algo ao outro. Agora, tudo terminara. Chegara um dia a sua casa a tempo de o ver sair, de maca, coberto pelo seu pijama de riscas azuis, a mão deformada pelo tempo, caída para fora do improvisado leito, parecia acenar num derradeiro adeus, indiferente ao rosto inexpressivo e ausente. Os adultos mal haviam dado conta do seu choque, dada a pressa com que agiam. Fora a última vez que o vira. A partir daí, a sua alma faminta, alimentava-se da recordação desses dias passados juntos, onde aprendera a aliviar a sua alma carregada.
O rapaz voltou a folha que se agitava violentamente na sua mão. Procurou uma posição mais cómoda, onde o vento não lhe tentasse arrancar o jornal. Após várias tentativas, levantou-se e procurou outro local mais abrigado. Encontrou o esperado abrigo na curva da colina. Olhou com atenção a página. A sua memória visual ajudou-o a reconhecer o nome do periódico, só que em tamanho mais pequeno, sem qualquer destaque. A sua atenção redobrou quando se sentiu familiarizado com ele. Voltou a página. O seu olhar deparou com a secção preferida do querido ancião. O rapaz sentiu as lágrimas turvarem-lhe a vista. Sentiu uma onda de ternura percorrer a sua alma. Sentiu o aconchego na presença daquela folha que uma mão invisível transportara até ele. Começou a ler, esforçando-se à semelhança do seu velho amigo, por ligar as sílabas, voltando ao início da frase para poder ler já mais facilmente e descobrir o seu sentido. A magia das palavras encheu-lhe a alma. Sentiu-se transportado para um mundo mágico, onde a fantasia o fazia esquecer a sua rude vida diária. Esqueceu-se do tempo, mas para quem não tem para onde ir, o tempo não fazia qualquer diferença. A estória era curta o que o deixou desconcertado. Como descobriria agora o fim? Olhou para a data, mas não lhe valeu de muito. Ele não sabia o dia do mês. Teria de procurar ajuda. Levantou-se e caminhou contra o vento, na direcção do único restaurante onde encontrava jornais amontoados. Assim que entrou, dirigiu-se ao balcão perguntando qual era o dia do mês em que estavam. O homem, surpreendido, mostrou-lhe o mês e o dia no calendário enorme que cobria a parede de azulejo branco. O rapaz olhou atentamente e comparou com a do jornal. Pelas suas contas, aquele jornal era dessa semana. Alguém o deve ter lido e colocado nos recipientes de ferro, colados ao chão, de onde o vento o arrancara. Mostrou-o ao simpático senhor, que confirmou as suas suspeitas. Onde podia arranjar outro mais antigo? O senhor indicou-lhe um volumoso monte de jornais que jazia a um canto. Ao ver a sua indecisão, o senhor estimulou-o com um simpático “Vai lá!”, sorrindo-lhe curioso. O adolescente dirigiu-se a ele e começou afastá-los, até chegar àquele cuja data antecipava o exemplar que tinha na mão. Procurou a secção e começou a ler. Pelo desenho das letras, adivinhava-se que o título era o mesmo, e com um bocado de sorte seria o início da narrativa que tanto apreciara. Começou a juntar as sílabas naquele esforço já familiar, procurando sofregamente aquele ambiente de que já sentia saudades. A leitura avançava com a mesma dificuldade de sempre, fazendo-o regressar ao início de cada frase para saborear o sentido. Às vezes, demorava-se mais numa expressão ou noutra procurando deslindar o que o autor quereria dizer com ela. E como havia expressões bonitas! O rapaz deixava-se impregnar por aquele mundo fantástico, agradecendo, do fundo do coração, ao seu amigo que lhe ensinara o valor da leitura. Agora, só tinha de acompanhar a narrativa até ao final, ansiando pelo seu fim.
O dono do bar-restaurante olhava-o com redobrada curiosidade. Oriundo de uma família com dificuldades financeiras e ambiente hostil, ele havia lutado muito para chegar até ali. Bom apreciador da natureza humana, ele gostara logo daquele jovem. Enquanto limpava os copos e os conduzia ao seu lugar, em cima de uma prateleira de madeira, com a boca virada para baixo, ele acompanhava o interesse do rapaz. A delicadeza com que tocara nos jornais, já gastos de tanta mão indiferente, mostrara-lhe que se tratava de um rapaz especial. Deixou-o ficar, não se importando com os clientes que entravam e saíam indicando-o com o queixo ou com a cabeça. O dono respondia simplesmente que se tratava de um jovem amigo. A partir dali, habituar-se-iam a vê-lo com regularidade, sempre de nariz enfiado nas letras escuras do jornal. O dono convidara-o a ler o jornal, que lhe oferecia, passada a semana. Se havia de ir para o lixo, ficava para ele, comentara alegremente. Sempre seria mais útil, confidenciara-lhe, e adivinhando que ele não teria local para o ler, convidou-o a visitá-lo todas as semanas. Aquele já ele poderia levar. Era uma oferta., sentenciou dirigindo-se aos jornais impecavelmente arrumados, e escolhendo aquele que ele estivera a ler. Com este já deveria ter a estória quase completa, não? Passou a vista pela secção visitada e depois por aquela que estava na mão do rapaz, concluindo que ele estava com sorte. Piscou-lhe o olho em sinal de cumplicidade. Podes vir quando quiseres. O rapaz agradeceu e arrastou os pés até casa, com os dois exemplares na mão. Não sabia bem porquê mas não sentia já tanta relutância em voltar a casa. Nem o seu quarto lhe parecia aquele local vazio só preenchido pelos gritos de raiva e a pancada do pai. Ele tinha algo que ninguém lhe poderia alguma vez tirar – as suas recordações e o mundo mágico imaginário da leitura – que lhe preenchiam a alma. Tal dissera o seu grande amigo, também a voz da leitura era amiga e ensinava. E havia que ter sempre atenção a isso. Como é que ele saberia? Ora, lendo a mensagem que cada estória contém e sentindo-a no seu coração. Eram essas mensagens que se traduziriam no homem que ele um dia se tornaria.
Fátima Nascimento 26/12/2008
Era uma vez dois peixes diferentes de todos os outros daquela aldeia. Chegaram, uma noite, vindos não se sabe de onde. Chegaram num estado lastimável e todos haviam sentido medo, negando-lhes qualquer espécie de ajuda, incitando-os alguns a abandonar aquela aldeia, porque não gostavam de estranhos. Como eles se arrastassem por ali, os habitantes da pacata aldeia nunca mais se sentiram seguros. Como não sabiam nada sobre eles, a presença daqueles peixes estranhos era sentida como uma ameaça por todos. Todos tentavam arranjar explicações para as suas aparências, tentando também descortinar as suas intenções ao permanecerem por ali, quando sabiam que não eram desejados naquela povoação. Começaram então a inventar-se histórias sobre eles, que aguçavam o medo e a insegurança dos pacatos aldeãos. Aquela aldeia fora até ali, um local seguro e aprazível para se viver e não permitiriam que dois desconhecidos, vindos sabe-se lá de onde, lhes viessem perturbar a segurança a que estavam habituados. A presença daqueles peixes era uma ameaça para a comunidade. Sabiam lá eles o que viria atrás deles… a sua presença, não augurava nada de bom.
Quando eles se aproximavam da aldeia, as ruas tornavam-se desertas como se tivessem sido varridas por uma gigantesca vassoura invisível. As mulheres entravam apressadamente em casa, arrastando atrás de si as crianças arrancadas violentamente às brincadeiras e que barafustavam ruidosamente perante aquela atitude brusca das mães. Só alguns homens permaneciam na rua erguendo-se como um muro e impedindo-lhes a passagem. Aqueles estranhos visitantes andavam sempre juntos. Eles paravam, olhavam-nos directamente nos olhos ferozes e depois à sua volta, como se avaliassem o perigo por momentos, cortavam então no atalho mais próximo, evitando o confronto com os sorridentes habitantes que se entreolhavam orgulhosos da sua atitude. Haviam afastado o perigo. Os dois peixes estranhos naquelas paragens, tinham na memória o último encontro desastroso com a população da aldeia. Eles caminharam ao longo da rua deserta e encontraram um peixito a brincar com as bolhas de ar. Ele estava tão absorvido que nem viu aqueles peixes estranhos, de quem toda a população falava, aproximarem-se dele. Indiferente ao que se passava na aldeia, aquele peixito que passava os dias a brincar na rua, enquanto os seus pais trabalhavam, descuidara-se e deixara-se levar pelo entusiasmo da brincadeira e não vira como a rua se esvaziara a dado momento. Habituado a estar só e a arquitectar o seu próprio mundo de fantasia, ele permanecera ali, alheado a tudo e a todos. Foi então que uma das bolhas de ar seguiu a direcção dos forasteiros e se colou a um deles. O grande peixe pegou cuidadosamente naquela bolha e estendeu-a gentilmente ao peixinho. O peixito agradeceu a devolução da sua bolha de ar e olhou para o forasteiro, para a barbatana que detinha a bolha de ar, depois, para os olhos sorridentes e gentis e … foi o choque! Eram eles! A reacção imediata do peixito foi voltar-se e fugir, quando ouviu uma voz calma e simpática:
- Esta bolha de ar é tua? -perguntou.
- S… sim! - respondeu o peixito assustado, olhando à volta para ver se via alguém.
Atrás das janelas das casas da aldeia, dezenas de olhos assistiam à cena, horrorizados, temendo o pior.
-Quando era pequeno, também brincava com as bolhas de ar. – explicou o grande peixe. – Fiquei contente por ver que mais alguém também faz isso. O outro peixe sorriu, acenando a cabeça sonhadoramente.
O peixito arregalou os olhos de espanto.
- O senhor também brincava com bolhas de ar? – perguntou admirado.
- Claro que sim. Passava horas a admirá-las. Admirava a sua forma tão perfeita, a cor e a luz que delas se libertavam… e que reflectiam tudo à volta delas. Por vezes, acontecia imaginar histórias enquanto as acompanhava com o olhar.
- Os meus amigos acham que eu sou esquisito, por passar tanto tempo a brincar com elas.- e corou ao admitir uma verdade que tinha escondida no peito. – Eles julgam que eu sou maluco. Alguns já tentaram fazê-lo, para me agradar, mas aborreceram-se logo.
- Os teus amigos deviam dar mais atenção ao que os rodeia. Assim, eles descobririam as pequeninas maravilhas que a natureza nos oferece, até nas simples bolhas de ar… - explicou a companheira do grande peixe, de rasgados olhos sonhadores, numa voz doce um pouco quebrada.
- Pois é! – exclamou o peixito entusiasmado, sentindo-se compreendido.
- Mas nem todas as pessoas têm essa capacidade para ver aquilo que tu vês. É por isso que elas se aborrecem! Mas essa diferença não deve separá-los, mas uni-los! Tu possuis algo que os outros não têm e os outros possuem algo que tu não tens, a diferença só poderá ser vista sob o ponto de vista do enriquecimento. É da diferença que nasce a necessidade que temos uns dos outros, pois uns vêem algo que aos outros passa despercebido e vice-versa. Podemos, todos juntos, ajudarmo-nos a ter uma perspectiva global do mundo que nos rodeia - sentenciou o peixe grande.
- É mesmo?! – perguntou o peixito admirado. –Nunca tinha pensado assim…
De repente, pareceu acordar de um sonho. O seu olhar meigo foi substituído por um desconfiado. Embaraçado, percebera que falara com os estranhos de quem toda a população fugia com medo.
- Bem, tenho de ir para casa, agora. Está ficar escuro e não devo demorar-me mais.- explicou ele atrapalhado. – Os meus pais devem estar a chegar e vão ficar… Tarde demais.
Uma voz dura e cortante rasgou as águas já obscurecidas pela noite que caía, logo seguida por um grito feminino. Eram os pais do peixinho que regressavam do trabalho. Das mãos do pai, um objecto longo de metal, emitia, de vez em quando, alguns relâmpagos de luz crepuscular laranja que tomava uma cor fria, depois de reflectida no metal escuro da arma. Após a chegada dos estranhos, a população costumava trazer consigo as armas há muito já esquecidas nos armários, uma vez que, eram raras as intromissões naquelas remotas paragens. A última registara-se há muitos anos atrás, quando um peixe enorme e mau se havia perdido e tinha descoberto aquela pacata aldeia. Com ele vieram os seus duvidosos amigos. A população, aterrada, vira os seus campos destruídos e todos aqueles que amavam ameaçados e chantageados até conseguirem aquilo que desejavam. Depois de terem visto satisfeitos os seus caprichos, eles haviam retomado o seu caminho, deixando atrás de si uma população desanimada e cansada. As armas haviam então saído dos armários mas era tarde demais para fazer fosse o que fosse. O ataque fora de tal modo rápido e inesperado que apanhara toda a população desprevenida.
- Afaste-se do meu filho, já! – gritava a voz ameaçadora.
Os dois peixes afastaram lentamente as suas barbatanas do corpo, numa atitude de surpresa, sem contudo mostrarem qualquer espécie de medo. A sua atitude mostrava só que não procuravam problemas. Já haviam passado por muito para agora terem medo fosse do que fosse. Medo só tinham de ideias como aquelas que levaram ao extermínio de quase uma população inteira, da qual só eles dois pareciam ter sobrevivido. Depois de uma perseguição cerrada, os dois haviam levado a melhor sobre os seus perseguidores e haviam fugido à sua cerrada vigilância. Fora assim que haviam chegado ali, onde haviam permanecido escondidos durante algum tempo, a observar, até perceberem que, aparentemente, se tratava de uma aldeia normal, que não constituía ameaça para eles. Começaram então a aventurar-se. Primeiro, em busca de comida, às escondidas, fora das horas de maior movimento, depois, começaram por se deixar, pouco a pouco, ver pelos habitantes, na tentativa que eles se habituassem à sua presença. Nada disso fora fácil. A população sobressaltara-se quando os vira, e olhara-os ferozmente de lado. Aquele olhar dizia-lhes claramente que não gostavam de os ver por ali a rondar. Tentaram ainda bater à porta e falar com alguns habitantes mas estes mandaram-nos embora, sem sequer os ouvir. Eles tentaram falar com eles, mas só receberam ameaças
Instalaram-se fora da aldeia, e ali viviam sossegadamente, cultivando o seu pedaço de terreno, do qual retiravam o que comiam. Os habitantes da aldeia murmuravam entre si, estranhando a presença daqueles súbitos intrusos. Como não sabiam nada acerca deles, os sossegados habitantes interrogavam-se sobre aquelas personagens surgiram histórias estranhas, que aguçavam a imaginação dos pacatos aldeãos.
O peixito assustado com a voz ameaçadora do pai, correu na sua direcção, escondendo-se debaixo da barbatana direita da mãe, que o acolheu aliviada, fitando duramente os intrusos.
- Vão-se embora daqui para sempre. Não os queremos aqui. – continuou a voz ameaçadora.
Os dois peixes grandes entreolharam-se. À sua volta as portas das casas, começaram a abrir-se lentamente e dela saíam outros peixes também de armas
Quando os dois estranhos abandonaram a rua da aldeia, os habitantes olharam uns para os outros aliviados e olharam o peixito estarrecido, ainda escondido debaixo da barbatana protectora. O peixito observara tudo de olhos muito abertos pelo terror. Não sabia bem o que temera. Lembrava-se da conversa e da atitude desprendida dos dois peixes, da delicadeza com que lhe devolveram a bolha de ar, agora perdida com todo aquele alarido, a doçura das palavras e o olhar sonhador. Não se tinha sentido ameaçado em momento algum em que estivera junto deles. A sua intuição, desde sempre aguçada, não o alertara contra a presença dos dois estranhos, e era engraçado, porque ela nunca antes falhara. O que acontecera então?
As mulheres, logo seguidas das crianças, saíram à rua comentando o perigo que ameaçara o peixito. Cercaram o peixito, retirado da protectora barbatana maternal, e assaltaram-no com perguntas que o baralhavam completamente. Intimidado, refugiou-se novamente no esconderijo improvisado.
- Calma, calma… - aconselhava a mãe aos outros peixes – Nada de mal aconteceu. Vamos ter calma. Estão a aterrorizá-lo!
O peixe mais idoso, de fracas barbatanas e uma longa barba branca, os olhos protegidos por grandes lentes redondas, dirigiu-se aos restantes companheiros, na sua voz fraca. Como os outros não o ouviam devido à confusão, desenhou na água um gesto imperioso para calar os restantes companheiros.
As vozes foram-se apagando pouco a pouco.
- Companheiros, não podemos adiar mais este problema. Temos de nos reunir e decidir o que vamos fazer, relativamente aos estranhos. Porque não aproveitamos esta oportunidade para nos reunirmos e decidimos, de uma vez por todas, o que vamos fazer em relação aos dois estranhos? – proferiu ele na sua voz calma e trémula, e continuou - E porque não fazemos agora?
Os outros olharam-no sem compreenderem.
- Vamos discutir todos este assunto e resolver o que devemos fazer com os dois estranhos. Com certeza que os meus ilustres conterrâneos já devem ter uma opinião sobre este assunto… uma vez que a presença deles já foi notada por nós há algum tempo. – explicou ele aos mais desatentos.
Assim foi. Para terminar com o grande alarido provocado pela presença dos dois peixes estranhos, reuniram-se, nessa noite, para discutir a presença e o destino dos forasteiros. O local da reunião era uma gruta espaçosa, destinada a deliberações importantes e, como nada de importante tinha acontecido naquela remota aldeia do oceano, havia muito tempo, ela pouco havia sido usada, a não ser para grandes acontecimentos familiares. Os poucos habitantes da aldeia acomodaram-se silenciosamente na sala, os adultos rodeados de perto pelos seus filhotes, todos na expectativa do que se iria passar, pois todos haviam trocado já impressões mas nunca de forma tão aberta e era-lhes difícil descortinar, depois de todo aquele reboliço, qual seria o desfecho de tão inesperada reunião. Uma vez todos sentados, e passado o barulho característico dos peixes a acomodarem-se nas suas cadeiras, o ancião tossiu para desobstruir a garganta e falou na sua voz trémula mas decidida.
- Meus irmãos, já não é possível ignorar por mais tempo a presença destes dois estranhos que tanto nos tem importunado. Temos de tomar uma atitude para bem de ambas as partes. Só, assim, poderemos continuar a viver
O silêncio que antes pesava naquela sala, tinha-se dissipado para dar lugar aos murmúrios das trocas de impressões. Sobrepondo-se ao barulho geral daqueles sussurros, uma voz masculina fez-se ouvir claramente:
- O que é que eles têm a ver connosco ou nós com eles? Nós vivíamos perfeitamente felizes e em paz, antes de eles chegarem e ocuparem um lugar junto de uma comunidade que não lhes pertence, e sem se importarem com o que nós pensávamos acerca disso.
De novo os sussurros tomaram conta da sala. Vozes mais alteradas, procurando dominar outras mais calmas.
- Sem nos esquecermos do perigo que a presença deles representa para todos nós. – declarou um peixe gordo, de pele avermelhada.
Outras vozes se fizeram ouvir, apoiando esta última. O peixe avermelhado sorriu agradecendo o apoio. O velho ancião abriu novamente os braços, como se os quisesse abraçar a todos. Mais uma vez se fez silêncio, ouvindo-se só o barulho dos ocupantes da sala, remexendo-se nos seus lugares.
- Meus amigos, estes dois estranhos já estão a viver connosco há algum tempo. Alguém tem alguma razão de queixa deles? – perguntou ele dirigindo o seu olhar à vasta sala.
Um peixe de barba preta e ar sisudo, levantou a barbatana e a voz fez-se ouvir das últimas fileiras.
- Desapareceu-me alguma fruta do meu pomar… logo quando eles chegaram! – disse ele resolutamente.
Outras vozes fizeram coro com a dele. A sala remexeu-se em peso e corria-se o risco de se criar nova confusão e de entrar noite dentro sem nada se resolver. Uma senhora-peixe lembrou-se subitamente que tinha deixado a panela ao lume e abandonou a sala a correr. Uma outra seguiu-lhe o exemplo, pois não se lembrava se havia fechado a porta. A voz do peixe ancião atravessou de novo a sala.
- Se mais alguém tiver de sair, faça-o agora pois temos de resolver hoje este assunto. – disse ele arrastando o seu olhar pela sala, mas mais ninguém se mexeu do lugar. Chegaram entretanto as duas mulheres que haviam saído, entrando tão precipitadamente quanto haviam saído. Ocuparam os seus lugares, trocando algumas breves palavras com os peixes sentados nas proximidades.
- Podemos agora começar? - perguntou o ancião, acrescentando – O peixe Rodrigues dizia há pouco, e vocês sublinharam as palavras dele, que lhe faltara alguma comida. Alguém tem mais queixas para além da falta de comida que parece ser comum a mais do que peixe?
Ninguém se pronunciou. O ancião continuou:
- Alguém já se interrogou porque razão eles o teriam feito? Algum de vós lhes deu alguma comida quando eles muito simplesmente vos bateram à porta e vo-la pediram? O que fizemos nós, quando nos pediram a nossa ajuda? Limitámo-nos a olhá-los horrorizados com a aparência deles, sem sequer nos interrogarmos ou a eles, sobre o que se tinha passado. Limitámo-nos a escorraçá-los…
O silêncio revelava agora um sentimento geral de embaraço perante aquelas palavras proferidas de forma tão directa.
- O que quer que lhes tenha acontecido, eles devem ter lutado arduamente pelas suas vidas… Daí o seus aspectos, já pensaram nisso? Tratava-se unicamente de um casal em fraco estado físico e psicológico e nós deixámo-nos intimidar pelas suas aparências, sem lhes darmos qualquer oportunidade de se revelarem como peixes que são. Faltou-vos comida, é certo… mas faltou-vos unicamente a comida que declinaram de má vontade, recusando-se a olhar o que diante de vós se mostrava… Vocês não escorraçaram os dois peixes, eu sei, mas a miséria que viam diante dos vossos olhos e que vos assustava… Algum de vós trocaria o vosso lugar pelo deles? - os seus olhos perscrutaram a audiência calada, embaraçada pela vergonha, que olhava nas mais variadas direcções, sem nada para dizer, - Não, eu sei que não… Quando nós lhes negámos toda a espécie de ajuda, inclusivamente o direito de atravessarem as nossas, o que fizeram eles? Limitaram-se a ocupar uma gruta há muito tempo deserta, fora da aldeia, um local que nenhum de vós reclama, porque não pertence a ninguém, nem ninguém o cobiça… Ali, eles fazem a vida deles, sem nos incomodarem, sem nos exigirem fosse o que fosse… sem sequer imporem a sua presença, salvo quando lhes era absolutamente necessário… Meus amigos, se eles fossem más pessoas, nós já teríamos alguma razão de queixa contra eles, não é verdade? Não podemos recorrer também às más experiências do passado para justificarmos as acções do presente, porque o presente é o presente e é como tal que tem de ser avaliado, sem traumas passados a assombrá-lo… o passado serve unicamente para aprendermos e continuarmos a viver com as lições aprendidas, nada mais… temos de nos abrir ao futuro, e o futuro passa pelo acolhimento destes dois no nosso seio. Não há volta a dar ao assunto… Já passaram pela gruta deles? Não, creio que não… - disse olhando atentamente os seus companheiros – mas eu, na minha atrapalhação própria da idade, perdi-me por lá um dia destes… e devo dizer-lhes que eles não são diferentes de nós… de uma gruta vazia, eles fizeram um lar, o seu lar, e foi lá que eu fui acolhido e ajudado, como se de um longo amigo se tratasse… daqueles que precisam de ajuda. Dividiram comigo o pouco que tinham, ou deverei antes dizer, têm e ali estava eu, são e salvo, de regresso a casa. Quando viram os dois estranhos a falar com o peixe Zézito, o que pensaram? O pior… esconderam-se em casa a espreitar pelas janelas temendo o pior… e o que viram? Dois peixes adultos a conversar com um peixito da aldeia, nada mais…
Os olhos de todos pousaram sobre o novo alvo da conversa, que se encolheu, junto da mãe.
- Tiveste medo deles, peixe Zézito? – perguntou o ancião ao peixito que se limitou a discordar dele. O único medo que eu vi nos olhos dele, foi aquele que vocês provocaram com as vossas histórias na imaginação dele e, depois, com os vossos gritos e as vossas atitudes perante a situação… temos de ter calma, amigos, calma para avaliarmos as situações e as pessoas e, então, agir. Já se perguntaram porque é que eles, apesar de tudo o que aconteceu, ainda não se foram embora daqui? Eu perguntei-lhes e a resposta dada foi inesperada e demonstrou uma compreensão da situação que me admirou e só peixes que passaram pelo que eles passaram sabem dar o valor… e sobretudo quando passaram por tudo sem se tornarem maus ou amargos… e devo dizer-lhes que eles viram soçobrar familiares e amigos arrancados à vida por filosofias como aquela que nos levou a ignorá-los e a marginalizá-los. Eles perceberam que, apesar da nossa atitude, era o medo que falava por nós e que, com paciência, nós iríamos acabar por compreender o tipo de pessoas que eles eram… eles perceberam que nós não éramos más pessoas, como aquelas que eles encontraram nas suas vidas.
Fez-se um longo silêncio na sala. Ninguém sabia exactamente o que dizer ou o que fazer. Uma vozinha fez-se então ouvir, tímida ao princípio, depois, resoluta.
- O que podemos fazer para emendar o que lhes fizemos? – perguntou o peixito, todo vermelho ao sentir os olhos de todos pousados nele. Os olhos voltaram-se para o ancião interrogadores.
- Poderemos por começar já amanhã… eu vou falar com eles, e contar-lhes o que sucedeu aqui hoje… quanto ao que fazer, podereis ver pelos vossos próprios olhos que há imenso para fazer, que nos irão ocupar algumas horas daqui para a frente, isto é, se tiverem na disposição disso, claro.
Dizendo isto, observou a sala para ver se havia voluntários. Pouco a pouco, as mãos foram-se levantando até a plateia se levantar alegremente a bater palmas. Todos estavam entusiasmados com a ideia de ajudar os dois desconhecidos. E estavam, sobretudo, contentes por eles, por terem encontrado uma solução para este caso, que os incomodava já há algum tempo, e que ameaçava tomar contornos mais graves, desagradáveis e até inesperados. Todos suspiraram de alívio, dando agora aso à sua imaginação, alegria e projectos para ajudar aqueles dois desconhecidos que haviam deixado de o ser.
No dia seguinte, logo de manhã, o ancião dirigiu-se, tal como prometera, à gruta dos dois amáveis desconhecidos, para lhes contar o que se passara na noite anterior. Os dois peixes ouviram com atenção e agradeceram ao velhote as palavras. Passados alguns minutos, uma aldeia em peso dirigia-se, armada de toda a espécie de ferramentas, tecidos e alimentos para aquela gruta fria, habitada pelos dois peixes desconhecidos, e, após terem as ordens necessárias para avançar, puseram mão ao trabalho. As senhoras peixes dentro da gruta, orientada pela peixe Olívia e, no campo, os peixes ajudavam o marido, Justino, em tudo o que era preciso fazer. E havia tanto que fazer! Até as crianças peixe ajudavam em pequenas tarefas…
Conto escrito por Fátima Nascimento Dias
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