Sexta-feira, 11 de Setembro de 2009

Noites infinitas

Todas as noites se repetia o mesmo ritual. Mariana saía de mansinho pela porta das traseiras e encavalitava-se em cima do muro, olhando a imensa abóbada escura e longínqua toda salpicada de brancos e pequenos pontos brilhantes que adornavam a longa cabeleira negra da lua. Esta, nas claras noites de verão, vestida de um branco amarelado e redondo, sob o qual se salientavam as suas formas escuras, sorria placidamente ao encanto infantil cujos olhos, pregados na misteriosa imensidão, pareciam esperar pacientemente por algo importante. O rechonchudo rosto amarelo, habitualmente descontraído e altivo, passara a revelar uma certa timidez, pensando que os olhares se dirigiam a si. E no início fora assim. Aqueles olhos infantis pareciam dotados de um magnetismo capaz de descartar qualquer tipo de capa que pretendesse ocultar a mais ínfima partícula do seu ser. Ao princípio reagira timidamente, depois, já habituada aos profundos olhares curiosos da criança, ela descontraíra-se e, passados uns meses, foi com tristeza que notou que os olhares se haviam desviado da sua face, para se colarem algures na profundidade espacial. Dir-se-ia que viviam momentos íntimos que escapavam à maioria dos olhares dos comuns mortais. O interesse não estava relacionado com tradições populares ou outras crendices próprias de alguns adultos fascinados como oculto. Era, definitivamente, diferente. Poderia apostar o seu brilho em como ele era simplesmente… científico. Nada mais, nada menos. Mas parecia haver mais, uma determinação serena acompanhava as vigílias nocturnas, mesclada de um sentimento que ela não conseguia identificar. Mas, tal como aquele olhar profundo e arguto que perscrutava o negro silêncio espacial, também ela se interessara por aquela figura alta e esguia, curiosa por descobrir as motivações secretas da sua fiel presença. Estava certa de haveria mais e estava decidida a descobri-las.

  Sempre que se encontrava sozinha, ou se aborrecia da brincadeira, o muro era o local onde habitualmente se refugiava, nas noites brilhantes de verão. Não se pode dizer que Mariana fosse uma criança diferente das outras. Nada disso. Integrava-se perfeitamente nas brincadeiras desfrutando com a mesma alegria de todas elas. Contudo, por vezes, elas pareciam não resultar. E nem sempre a culpa era de Mariana, apesar do que a mãe, habitualmente, lhe queria fazer crer. Nem tudo dependia só dela. Os outros com quem brincava também tinham a sua responsabilidade na nefasta evolução das brincadeiras. Sim, porque, muitas vezes, Mariana nem percebia exactamente o que se passava. Na maior parte das vezes, nem queria saber. Intuitivamente sabia que não era bom, mas nem queria saber de quem era a culpa, embora ficasse muitas vezes a pensar se seria sua. Mas não perdia muito tempo a pensar no assunto. Independentemente da sua vontade, os problemas pareciam solucionar-se magicamente. Parecia um ciclo ao qual haveria de se habituar. Este estava, muitas vezes, preso aos caprichos de quem não se debatia com problemas de solidão. E esta, Mariana conhecia bem. Talvez, por isso mesmo, ela tivesse aprendido a dar-lhe utilidade.

  Lá em cima, do seu alto poiso, a lua observava a criança absorta na sua investigação nocturna. O que a intrigava era a serenidade com que ela o fazia. Era como se não esperasse nada de novo, mas algo que lhe seria familiar. Era estranho… Bem, não seria propriamente estranho, uma vez que ela já tinha testemunhado muitos dos denominados fenómenos não pertencentes ao planeta em cuja órbita rodava incessantemente. Já observara de tudo e a todos fora fiel na sua cumplicidade. Não se interrogava sobre nada, apenas aceitava a vida tal como era. Tal como aceitara ser observada e, mais tarde, tocada pelo pé do homem.

  Mariana estava sentada em cima do muro, já há algumas horas, observando as estrelas. Não se preocupava em saber os seus nomes ou as suas formas, apenas lhe interessava apreciá-las e interrogar-se sobre a sua existência. Será que elas ainda lá estariam? Saberiam elas da sua existência? Será que estavam todos mesmo interligados? Que elas libertavam energia e que ela se espalhava pelo universo, isso não era novidade… mas de que forma se absorveria essa mesma energia? O que faria com que os planeta se mantivessem todos no mesmo lugar, descrevendo uma órbita à volta da mesma estrela? Porque não cairiam eles pelo espaço abaixo? Seria o espaço um sítio tão equilibrado e estável, sereno mesmo quanto aparentava? Esta e outras questões saltavam frequentemente a mente de Mariana. Era frequente pensar, na sua qualidade de ser humano pouco compreendido pelo seu entorno familiar e amistoso que parecia não pertencer ao planeta que parecia habitar devido à amabilidade de alguém. Era como se estivesse de visita… Sentia, lá no fundo do seu ser, que não era igual às outras crianças que a rodeavam, para já não falar dos adultos... Era como se ela tivesse algo que outros não possuíam, algo que nem ela mesmo sabia o que era. Algo que só o espaço, juntamente com os seus fenómenos e mistérios, saberia explicar. Algo que, por mais que se esforçasse, parecia impedir a sua integração junto dos outros. A sensação de não ser compreendida nem pelos seus próprios pais era diária. O que era ela afinal? Ela já tinha a explicação para quem era, mas o que era? Aparentemente tinha tudo igual a todos aqueles que a rodeavam, de nada se diferenciava deles. Então o que se passava? Por que é que a sua integração junto dos outros era tão difícil? O que é que os separava? O que é que… Os pensamentos bailavam suavemente dentro da cabeça da criança, desenhando coreografias desafiadoras.

  Subitamente um ruído despertou-a da sua observação meditativa. Olhou à sua esquerda. O seu vizinho regava as plantas que, com tanto carinho, plantara nessa Primavera. Era o jardim mais bonito do bairro. Separado dos outros por um baixo muro caiado, a forma quadrangular estava emoldurada por um canteiro onde várias flores, de várias formas e cores, aguentavam estoicamente o calor que lhes chegava como flechas flamejantes, ameaçando a suas texturas acetinadas. Era à noite que o cântico das plantas pairava no ar como suaves borboletas festejando o ar morno impregnado do perfume a terra húmida. Ao centro, o pinheiro escandinavo espreguiçava os elegantes ramos ocupando todo o resto do espaço do canteiro central. Era como se uma orquestra vibrasse sob as ordens do grande maestro. Era por ali que Mariana se perdia, nas tardes serenas e mornas, admirando a forma e o aroma de cada flor. Por vezes, era surpreendida pela vizinha do primeiro direito que, muitas vezes, a surpreendia e a admoestava por entrar num espaço sagrado. Considerava-se uma espécie de guardiã daquele espaço. Mariana sobressaltava-se sempre que tal acontecia, mas ela sabia bem a razão uma vez que nada de mal sucedia ao jardim durante a sua deambulação sonhadora. Uma vez chegara mesmo a informar o vizinho das suas frequentes visitas. Ele pedira-lhe um dia que prescindisse dos seus devaneios pelo seu jardim, temendo pela saúde das suas plantas, embora, lá no fundo, soubesse que nada de mal poderia vir dessas visitas. Ela, simultaneamente envergonhada e triste com a falta de confiança, concordara em obedecer e ele ficara mais descansado. Ali estava ele nesse momento, esticando a mangueira cor de laranja e transformando a água num abundante duche suave que deliciava as plantas sequiosas.

  Desviou o olhar para o fixar novamente na profundidade espacial. Como tudo parecia sereno e equilibrado lá em cima, como se uma força poderosa a sustentasse. Tudo parecia obedecer a uma força poderosa. Mariana instintivamente sabia que aquela escuridão encerrava muitos mistérios, mais do que alguma vez ela conseguiria dimensionar. Para si, aquela escuridão era infinita e ultrapassava em muito a imagem do livro de geografia onde os nove planetas, não contando com o satélite da Terra, se encontravam alinhados, descrevendo as suas órbitas à volta do sol como se fossem embalados por um carrossel gigante. Mas era das estrelas que mais gostava. Fenómenos encerrando nelas toda a luz do universo, como se de velas se tratassem em cima de um bolo de cobertura cremosa e escura.

  Os ruídos da mangueira arrastando-se pelo chão combinado com o da pressão da água abatendo-se sobre as delicadas folhas, sugaram a atenção de Mariana. Ficou por momentos olhando aquela figura alta e elegante atenta aos próprios gestos. Conhecia o vizinho desde que se conhecia a si própria como pessoa. A sua imagem confundia-se com a de um pai, atento, carinhoso e inteligente. Também ele era uma pessoa inadaptada. Parecia também ele encerrar dentro de si todo um conhecimento que escapava aos outros mortais. Presente e ao mesmo tempo enigmático, tratava-se de uma pessoa avançada para a sua época.

  Mariana voltou o rosto para o ilimitado céu mudo onde as estrelas pareciam acenar-lhe alegremente. Mariana abriu a boca num longo bocejo. Nada de novo. Aquele céu parecia uma colcha escura salpicada de pedras preciosas. Mariana começava a sentir-se cansada. Sempre sentira que olhando o vasto espaço, encontraria um indício, a resposta para as suas inquietações. Sempre sentira que viria alguém resgatá-la na sua nave espacial, levando-a para o local onde verdadeiramente pertencia. Quanto mais passava o tempo tanto mais crescia a frustração e o desânimo de Mariana. O céu estava morto, indecifrável, e nada de interessante sairia dele.

  Levantou-se e dirigiu-se cabisbaixa para a silenciosa porta que a esperava pacientemente, erguendo a cabeça de vez em quando, para o teimoso céu fechado. Imóvel, sereno, distante.

  Ao aproximar-se das escadas, viu o vizinho do outro lado do muro que a olhava com simpatia. Desenroscava a mangueira da torneira preparando-se para a enrolar. Subiu as desanimadas escadas parcamente iluminadas pela lâmpada da porta ao lado. Engraçado, ele nunca tratava a casa como se lá pertencesse. Esta não era mais do que uma das muitas estações onde ele permanecia algum tempo, entre viagens, e onde aglomerava os seus poucos pertences. Também ele não tinha uma casa. Passava a vida viajando pelo mundo, não pertencendo verdadeiramente a lado nenhum. Antes que pudesse cumprimentá-lo, ele lançou-lhe:

  - Alguma novidade?

  Mariana olhou-o com curiosidade. A que se referiria?

  O senhor levantou um pouco a cabeça que reflectia a luz, momentos antes inclinada sobre a tarefa desempenhada com a cadência de sempre, e observou-a com os olhos travessos colados às pálpebras, enquanto os lábios finos se mantinham firmes no seu traço. Havia um tom ligeiro na sua voz que o desenho dos lábios contrariava. O riso desprendido no olhar insinuava segredos calados na gravidade da sua voz.

  Seria imaginação sua? Sempre o considerara uma pessoa excêntrica e boa, mas cuja vida não passava de um segredo. Ninguém sabia nada dele, o que levava as pessoas a respeitá-lo sem contudo confiarem demasiado. Consideravam-no uma pessoa inteligente e justa embora considerassem as suas ideias peculiares. A verdade é que ninguém possuía uma cultura que ultrapassasse a sua. Parecia ter engolido as experiências da vida de um só trago e retirado delas as conclusões mais razoáveis. Falava com a mesma convicção mantendo-se coerente com o que defendia.

  A pequena corou. Ele apontou para o pilar do muro que segurava o largo portão verde de alumínio. Ela sentava-se lá desde o início do verão.

  - Não precisas de ficar embaraçada. Sabes que há uma razão para tudo o que fazemos? – interrogou-a parando os movimentos sincronizados.

  Deu meia volta e refugiou-se em casa onde a mangueira desapareceu na obscuridade. Mariana ouvia-o a remexer os objectos da sua cozinha transformada numa improvisada arrecadação. Regressou momentos depois, com as chaves da garagem na mão direita. Ia arrumar o carro na garagem. Era um velho volkswagen creme cujo motor a diesel fazia tremer os alicerces do velho prédio.

  - Fazes-me um favor? Abres-me o portão do quintal? – pediu enquanto se dirigia ao decrépito portão alto cuja porta parecia sofrer de uma grave doença de pele. Escamava-se rudemente e a chapa leve se tingia de uma cor acastanhada que a atacava em diversos pontos, vítima das inúmeras intempéries a que estivera sujeita durante anos, parecia inchada como se a escamação a roesse interiormente semelhante a um cancro invisível.

  Mariana olhou a porta adormecida da sua casa. Ainda não lhe apetecia dormir. Não depois da decepção que apanhara. Tinha de haver uma explicação para o que sentia. Então por que via as suas tímidas tentativas goradas? Resolveu colocar um ponto final aos pensamentos que a atormentavam e seguiu a figura que desaparecera na esquina do prédio e já removia o largo portão deixando o espaço protegido pela obscuridade que aninharia o carro. Dobrou a esquina do último retalho de quintal para a esquerda e dispôs-se a abrir o baixo e largo portão. Os passos largos e pesados afastaram-se ao longo da largura do prédio para desaparecer à esquerda. Alguns minutos depois, ouvia o potente motor a vibrar na sua direcção. Fechou o portão da rua e olhou para o céu. Nada se modificara nele. Pelo menos que notasse. Como era possível sentir algo sem nunca ter nada que o pudesse confirmar? Sobressaltou-se ao sentir uma presença junto de si. Olhou-o de relance. Também olhava as estrelas com um misto de saudade e frustração que a intrigou. Seria que ele sentia o mesmo que ela? Para grande surpresa sua, aquela figura alta e enigmática sentou-se no muro observando o céu como se o tempo se tivesse esgotado. Mantiveram-se durante algum tempo em silêncio até que ele falou com uma expressão grave não tirando os olhos do céu.

  - Tu sabes que existem extraterrestres entre nós, não sabes? Só que são tão discretos que nós não damos por eles. – ele analisou a sua reacção. A pequena ouvia com interesse. Ele continuou. – Já sentiste que não tens nada a ver com os teus companheiros de brincadeiras e da escola, que és diferente deles. Já pensaste porque será?

  Mariana deixou-se ficar calada com o coração batendo ferozmente no peito. Olhou-o ansiosamente. Será que aquele homem ainda novo que parecia ter dentro de si conhecimentos que remontavam aos princípios do tempo teria a resposta para as suas questões?

  - Já percebeste que enquanto as tuas amigas dedicam todo o seu tempo à brincadeira parecendo movimentar-se no seu meio natural, tu arrastas-te com questões que fogem à tua idade? Já percebeste que há uma razão para isso? Então poderemos ter esta conversa que ando a adiar à espera que chegasse a altura apropriada. Tu sabes que nunca te menti, não sabes? – A pequena acenou afirmativamente – Tens de me prometer que vais ouvir com atenção até ao fim. Eu vou explicar-te tudo por palavras simples para que compreendas… De resto, eu sei que estás já tão familiarizada com a ideia que não vais ter medo de nada do que te disser. Decerto que não irás uma vez que já estás familiarizada com a ideia. Vamos mais para aqui – disse empurrando-a docemente na direcção do muro oposto para evitar sermos ouvidos por outros aqueles que já nos estranham. Antes de começar deves prometer-me que não contarás nada a ninguém, uma vez que a nossa segurança e a de outras pessoas depende nós, estás a perceber?

  Instalaram-se comodamente debaixo do candeeiro público que vertia calorosamente a sua luz na sua direcção. O homem respirou fundo e calou-se com se estivesse à procura das palavras certas para começar a história.

  -Esta é a tua história. Esta é também a minha história e a de muitos outros que se encontram espalhados por este mundo fora – confidenciou ainda reticente, para ter a certeza de que ela percebia a responsabilidade do que estava prestes a contar – pelo que não estás, não estamos sozinhos… Como deves calcular, não estando no seu meio, fazem tudo para passarem despercebidos aos humanos, o que não é fácil, uma vez que eles parecem estranhar até os da sua própria raça. Tens de fazer outra promessa, os humanos não são melhores do que nós em nada, talvez sejam até piores em certos aspectos, mas mesmo que estejam errados não vamos influenciar o seu modo de vida ou a direcção que seguem, seja ela a certa ou a errada, nós somos meros hóspedes, e o facto de vivermos entre eles, não nos dá o direito de interferir nas suas vidas, ouviste? Seja em que aspecto for, compreendes? Eles ainda não estão preparados para saber da nossa existência. Não sei se alguma vez estarão… Agora, por onde hei-de começar? Talvez pela forma como viemos aqui parar, tu e eu…

 Inspirou fundo como se tentasse ganhar coragem para enfrentar uma história que parecia pesar tanto como o mundo.

  - Nós não pertencemos a este planeta nem a esta constelação. Vimos de uma outra, muito longe daqui, do outro lado oposto desta fronteira em expansão e pertencemos a uma constelação denominada Kohespeía. Ocupávamos o planeta Uheita, com umas características muito diferentes deste, embora intrinsecamente todos tenham a mesma composição, o resultado final pode sofrer alterações. Refiro-me por exemplo à morfologia das plantas, dos animais… A nossa civilização, nós somos uheitas, era respeitada e admirada por todas as circundantes com as quais vivíamos em paz e cooperação. Quando falo em civilizações vizinhas refiro-me a espaços que levam centenas, milhares e mesmo milhões de anos a percorrer… Não dependíamos tanto da tecnologia no nosso quotidiano como acontece com os humanos, limitando-nos a desenvolver as nossas potencialidades enquanto seres racionais. A nossa estrela mais próxima, a Kolomon, fornecia a luz e o calor necessário à manutenção do planeta e desde o mais ínfimo ser ao maior, todos dependíamos dela. Ao contrário do que acontece aqui, nós não nos regíamos pelo dinheiro, mas pela palavra. Tudo quanto tínhamos era de todos e para todos. Não havia polícia porque cada um sabia a responsabilidade que tinha e sentia-se merecedor dela.

   Por que fala sempre no passado? – interrogou a garota desconfiada temendo o pior – O que aconteceu?

 – Aconteceu aquilo para o qual não estávamos preparados. – respondeu melancolicamente o homem. – Já ouviste dizer que o sol, a estrela que ilumina o planeta Terra, está a morrer?

  – Sim, já li isso num livro de ficção científica. – respondeu a miúda. E contou-lhe em poucas palavras, o enredo da estória.

  – Então, consegues entender que todas as civilizações estão preparadas para tudo, menos para as consequências da morte de uma estrela como o Sol ou a Kolomon. Foi o fim de toda a civilização tal como a conhecíamos. Tivemos de abandonar o planeta o mais rapidamente possível e espalharmo-nos quanto antes pelo espaço. Foi um período conturbado. O processo da morte de uma estrela é medonho dado o resultado. Muitos dos nossos encontram-se noutros planetas que fomos encontrando pelo caminho. Dispersámo-nos pelo que é mais difícil darem por nós. Vivemos infiltrados noutros planetas também e, de vez em quando, vêm-nos visitar. Mas é sempre arriscado, uma vez que não conseguimos passar despercebidos. Há sempre um humano curioso que se atravessa no nosso caminho e nos denuncia. Há, infelizmente, alguns acidentes a registar mas, de uma forma geral, conseguimos passar despercebidos, uma vez que os interesses humanos são muito distintos dos nossos. Agora, como vieste até aqui? Depois de evacuarmos todos os nossos compatriotas, o nosso planeta não estava dividido em países, éramos uma grande nação, e todos nos podíamos deslocar sem problemas e percorrer grandes deslocações sem problemas, uma vez que não precisávamos de mei de transporte. Conseguíamos, conseguimos desintegrar-nos num determinado espaço e surgir num outro mais ou menos distante, projectando nesse espaço a nossa mente. Muitos de nós, sobretudo os mais pequenos, cujos pais não conseguiram sobreviver à morte da estrela, foram entregues em locais onde sabíamos que poderiam tomar conta deles. Tu foste colocada numa maternidade junto de outros recém-nascidos e criastes-te junto deles por aqueles que conheces como pais. Achámos por bem não te contar, uma vez que nada sabias do teu passado e foras criada por humanos. O que não sabíamos é que terias tantos problemas. O pior de tudo é o pai daquela tua amiguita que percebe as tuas capacidades e tem a falta de inteligência leva-o a comparar-te com a filha… Afasta-te dele. Mas tu já percebeste, não percebeste? Melhor assim… Mesmo assim, as diferenças entre ti e os humanos são grandes. A maneira de pensar não é, nem de perto a mesma, nem a de sentir… Tu estás numa situação difícil. És humana na criação mas é uheita na maneira de agir, pensar e sentir, o que se torna complicado. Não pertences a um lado nem a outro. Eu sou a tua única ligação àquele mundo agora desaparecido. Nem sei se os nossos conseguirão alguma vez identificar-te se se cruzarem contigo. – Aqui parou e fechou os olhos num recolhimento profundo. – Conseguem. Estarás sempre a salvo. Eles conseguem identificar-te onde quer que estejas, mas não intervirão. Chegará um dia em que terás de escolher entre este ou o nosso mundo. Aqui, já percebi que não és feliz. Não sei se alguma vez serás… Eu posso avaliar por mim. Não é fácil perceber uma civilização que se deixa comandar pelo dinheiro. Onde tudo é avaliado pelo lucro que dá… até o próprio ser humano. É revoltante, mas é o que temos. O que nós tínhamos era uma união grande entre os da nossa espécie e foi isso que nos tornou a civilização admirada e respeitada entre todos os que lidaram connosco. Há lendas que, ainda hoje, falam do nosso desaparecimento e de tudo quanto construímos. E estou a falar de várias civilizações, muitas delas muito diferentes da nossa. Este planeta, dada a distância do nosso, foi por nós visitado uma vez, estavam em plena guerra, uma das muitas que constam da sua longa História, pelo que não nos aproximámos. Só o fizemos agora por necessidade. Há medida que avançámos no espaço, fomos entregando muitos dos nossos. E foi neste que te tocou viver… que nos tocou viver. Só quero deixar bem assente que não tens de viver assim toda a tua vida, tu podes, a qualquer altura, optar por seres uheita, pelo que terás de deixar de viver a vida da forma como a conheceste até aqui para passares, digamos assim, à clandestinidade. A nossa civilização morreu, mas a nossa cultura está viva e, desde que não choque com a dos humanos, não vejo razão para não ficarmos por aqui até que consigamos um planeta vago, onde possamos estabelecer-nos. À velocidade a que o espaço aumenta, alargando as suas fronteiras, criando novos sistemas solares, depressa encontraremos um para nós. Basta termos paciência. As nossas buscas continuam e cada vez que os nossos exploradores voltam com novidades a nossa esperança aumenta. Tem fé, já não falta muito.

  – Conheceste os meus pais? Tenho irmãos? O que aconteceu à minha família? – a voz rouca da rapariguinha fez-se ouvir num murmúrio.

  À sua volta, os campos gorgolejavam de vida. O voo isolado de um pássaro numa rápida corrida para o ninho tapando à sua passagem as luzes tremeluzentes das candeias naturais que brilhavam a milhões de quilómetros de distância.

  – Só resto eu… perderam a vida ao salvar a de outros. Mas, como já expliquei, a nossa ideia de família não é igual à daqui. Nós formávamos a grande família uheita. Não há este conceito de família como se de uma tribo se tratasse. Compreendes? Qualquer uheitiano que tu encontres, e só o encontras se ele quiser ser encontrado, pertencerá à tua família assim como tu à dele. Mas no conceito deste planeta, eu poderia corresponder a um laço familiar de avô, já que és o bebé da minha filha mais nova.  Ela morreu ao dar à luz. O teu pai e irmãos morreram salvando a vida de outros. Tu és uma das poucas ligações familiares que me restam. Optei por ficar junto de ti, e acompanhei-te desde sempre, assim que percebi a civilização dos humanos. Tinhas de ter alguém para te proteger. Os teus pais humanos são boas pessoas, mas falta-lhes capacidade para entender o mundo tal qual ele é, nos seus tons cinzentos carregados e pretos. Desde que te conheces como pessoa que te lembras de mim junto de ti.

  – O nosso povo sabe onde estamos e como estamos? – perguntou Mariana observando as mãos que entrelaçavam os dedos. – E se sabem, como o fazem?

  – Bem… eu entro em contacto com eles através da mente. Não é sempre, como deves calcular, porque há humanos com o mesmo poder e, para evitarmos sermos detectados, e evitar bloquear-lhes as mentes, o que evitamos sempre, procuramos horas calmas para o fazer e não é sempre. Eles estão por aí espalhados, por esses países fora, distribuídos pelos diferentes continentes. É sobretudo na América que se encontram. Alguns daqueles povos conhecem-nos e sabem quem somos, mas nunca nos importunaram deixando-nos seguir a nossa vida enquanto eles vão à deles. Eles têm muitas histórias sobre nós. – O senhor virou para ela os seus olhos azuis metálicos que se contraíram num sorriso. – Eu vou-te ensinar a contactá-los para o fazeres quando decidires por que civilização optar. Lembra-te que tudo tem a ver com a concentração e as palavras antes pronunciadas servem de passaporte para a abertura do canal entre as mentes. É como a palavra-chave num computador que te dá acesso a um determinado espaço virtual. Estas palavras previnem que os humanos entrem neste espaço, como já sucedeu antes, quando ainda não tínhamos a certeza das capacidades dos humanos, porque não são todas iguais, ao contrário de nós. Tem a certeza de que os contactarás caso algo me suceda, para que te possam proteger quando eu já cá não estiver. Poderás fazê-lo também se te encontrares numa situação perigosa, da qual tens a certeza de que não te conseguirás desenvencilhar sozinha. Não poderemos colocar a nossa civilização ou o que resta dela em perigo por causa de uma leviandade, compreendes?

  – Como comunicarei com eles? Eu não aprendi a nossa língua! E se eu precisar deles, e se eles vierem em meu socorro como os identificarei? – inquietou-se a pequena, enquanto procurava digerir toda a informação em que mergulhara, fixando os seus olhos nas misteriosas estrelas.

  – É verdade. Não aprendeste. Mas basta que fixes estas palavras e todo o mundo até agora para ti desconhecido se abrirá para ti e toda a informação de que precisas te será dada. Alguém te tocará a mente e perceberás o que hás-de fazer e qual a aparência dele. Porque nós somos diferentes dos humanos, a nossa aparência é aquilo que nos faz passar despercebidos entre eles. E acredita que não vais ter medo da diferença. – acrescentou, rindo-se.

  – Por que não me contaste isso antes? – interrogou a miúda, sentindo-se frustrada. – Agora que contaste é como se tivesse encontrado o caminho para casa! Neste momento, tudo faz sentido. Eu sentia que não pertencia a sítio nenhum e agora compreendo porque tudo não fazia sentido…

  – E tu viveste entre eles, foste criada como uma deles… Imagina aqueles que chegaram com uma cultura enraizada, tal como eu, e tive de me moldar a esta civilização… – riu-se o homem cuja careca brilhava solenemente à luz artificial do candeeiro. Mas a essência é diferente, tens razão… Não somos tão diferentes assim, física ou mentalmente, somos na essência. Se quiseres na nossa natureza. Na nossa civilização, não há esta coisa de Bem e Mal, mas somente um equilíbrio que não se desfaz. Neste caso, os humanos são mais vulneráveis do que nós. Talvez por isso não confie neles. Há alguns que se distinguem pela sua natureza boa mas há outros que gostam de brincar com o fogo, usando o mal sempre com uma aparência de bondade. Nós não somos assim. Temos uma só natureza. Por isso não nos envolvemos com os humanos. Deixámos ficar de fora, levando uma vida paralela à deles, sem interferirmos nas suas vidas. Já agora tens de saber o teu nome e uheitiano.

   – Eu tenho um nome? – a pequenita arregalou os olhos.

   – Claro que tens. Antes de te colocar naquela maternidade já tinhas nome. Chamas-te Aquivatê. O meu nome é Arkeironé.

  A rapariguita repetiu os nomes num murmúrio, saboreando cada sílaba.

  – É bonito. O que querem dizer? – Mariana fixou o olhar no perfil masculino que se dilatou num sorriso, enquanto o rosto se voltava lentamente para ela.

  – O teu significa “brisa do mar” e o meu “regato inquieto”.

  A noite já ia avançada e o homem olhou para o relógio que luzia no seu pulso.

  – Não nos podemos dispersar. Vou ensinar-te as palavras que abrem o canal da mente para comunicares com os nossos. Concentrar-te-ás e dirás “Aquivatê kurindo isi abaêtê.” Queres experimentar agora? – sussurrou olhando em volta na certeza de que ninguém os via ou ouvia.

  Mariana acenou duas vezes com a cabeça.

 – Concentra-te e diz as palavras. – comandou suavemente. A pequena fechou-se sobre si e abriu a mente. Diante de si apareceu um rosto desconhecido que lhe tocou a mente de tal forma que as palavras foram excusadas. O rosto não mexia a boca antes se exprimia de tal forma clara dentro de si que ela compreendeu tudo o que lhe era transmitido. Viu, a determinada altura, o rosto desviar-se noutra direcção e compreendeu que havia mais alguém a partilhar o seu canal. Depois das saudações habituais os dois seres partilharam sentimentos e ideias e, quando se despediram, Mariana viu o rosto bondoso voltar-se para si e recebê-la como se de uma filha se tratasse. Sentiu-se, finalmente, em casa. Despediram-se e o canal fechou-se. Mariana voltou-se para o seu vizinho e abraçou-o.

  – Obrigado por me ter contado a verdade. Sei que só agora estou preparada para entender tudo. Obrigado, mais uma vez! – exclamou emocionada.

  – Já sabes que estarei sempre aqui para o que necessitares. Enquanto estiver… depois de mim, já sabes como deves fazer.

  Uma voz ensonada surgiu na porta da cozinha entreaberta, clamando que eram horas de se deitar. O vizinho piscou-lhe o olho.

  – Está na hora de ires. Amanhã também tenho meu horário humano que devo respeitar se o quiser manter. – riu-se ele. – As férias acabaram!

  Dirigiram-se os dois às portas que se abriam lado a lado e nelas entraram com uma frase de “Boa noite”.

  A partir daquela noite, a sua vida não mais seria a mesma.

 

Fátima Nascimento

Agosto de 2009

 

publicado por fatimanascimento às 09:01
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