Quinta-feira, 30 de Dezembro de 2010

A dança da vida

Era um dia cheio de sol e cores em que todos os mais diversos aromas se misturavam. A mosca, num voo estonteante, não sabia exactamente para onde dirigia. Limitava-se a seguir o rasto desses variados cheiros sem se decidir por qual haveria de optar. E andava à deriva limitando-se a seguir o cheiro mais forte captado pelas suas narinas. Sentia-se feliz. O dia estava bonito, a Primavera desabrochara e o ar era um cruzamento dos mais variados sons, todos reveladores da intensa e tenra vida acabada de despontar. Sentia a alma renovada, transbordante de uma alegria incontida. E nesse rodopio de sons, ruídos e cheiros, deixava-se levar embalada pelo ar morno da estação.  Adorava voar livremente, cruzando outros insectos que lhe deitavam um ar reprovador.

- Vê lá se vês por onde andas! – resmungou um moscardo com quem quase acabara de chocar.

Mas a mosca continuava a esvoaçar desenhando perigosas figuras aéreas e acrobáticas, desviando-se sempre dos obstáculos no momento próximo da colisão.

- Livra, esta foi por pouco! – murmurava incrédulo o aranhão de altas, curvas e finas pernas, empoleirado numa árvore, quando a viu evitar o ramo grosso e contorcido, encolhendo-se a um canto do ramo ao mesmo tempo que apontava os olhos para o frágil corpo escuro. – Onde irá com tanta pressa?

Mas a mosca, ignorando os contratempos, continuava a apreciar aqueles momentos luminosos e mornos. Abria as asas e um alegre zunido prolongado arrastava-se no ar leve. Nada a fazia mais feliz do que aqueles momentos de liberdade absoluta. Uma tranquilidade perpassava o seu ser e parecia ligada a todos os seres que a rodeavam. Deixou escapar um longo zumbido de prazer. Era como se fosse um prolongamento da paisagem que a rodeava. Se isto era a felicidade, então poderia admitir que era feliz. Sobrevoou um riacho estreito, de regurgitante água transparente e fresca que reflectia as ervas e as flores coloridas. Poisou numa flor próxima da água e observou-se. Era uma bela mosca! A sua cor negra, com tonalidades metálicas azuis-esverdeadas, reflectia orgulhosamente a luz. As suas asas transparentes e fortes, juntamente com as suas pernas elegantes levavam-na até onde a sua imaginação, aliada à sua vontade, exigia. Era feliz! Não lhe faltava nada! Era livre, forte e alimentava-se do que a natureza lhe dava. Sacudiu as patas dianteiras em sinal de satisfação. Lambeu a humidade da haste esverdeada, agrupada numa minúscula gota que reflectia, de forma distorcida, as flores mais próximas. Saciou-se, bateu rapidamente as asas, olhou em redor e lançou-se no ar, na habitual e exótica dança ziguezagueante. Nada a fazia mais feliz!

Subitamente, um cheiro gorduroso, misturado com um fumo branco, distraiu-a daquela sensação de plenitude que a alimentava. Deu meia volta e, quase sem dar por isso, estava na peugada do cheiro. De olhos fechados, deixou-se levar, embalada pela aragem morna. Entrou num quintal de muros altos e caiados. Poisou, cautelosamente, na protectora sombra dos beirados, assustada com o que avistava. Preocupada, olhou a paisagem infinita e imóvel por trás do muro coroado por um arame farpado. O seu instinto apontava-lhe o horizonte ondulado mas uma estranha curiosidade, aguçada pelos sentidos, manteve-a no lugar. Apontou os seus olhos redondos para o quintal, esquadrinhando-o por várias vezes. A sua atenção e os seus sentidos estavam a absorver toda a informação possível naquele espaço exíguo. Uma sensação de claustrofobia invadiu-a acordando os seus sentidos e incendiando uma sensação estranha semelhante à experimentada quando o perigo, ainda invisível, espreitava. Vozes, risos e gritos cruzavam-se no ar. Os mais pequenos corriam atrás de uma aventura imaginária, os adultos atarefavam-se em volta de uma mesa comprida. A um canto, desviado das rotas das crianças, um grelhador lançava no ar um fumo gorduroso que lhe aguçava o apetite. O que seria aquele cheiro em tudo diferente ao que já experimentara? E se fosse dar uma vista de olhos? A prudência aconselhava-a a permanecer no local protegido pela sombra. Não existia melhor esconderijo naquele espaço pequeno tão sobrepovoado de seres. Mas a curiosidade suplantou a cautela e, num exímio voo, alcançou o apetecido alvo. O fumo quente e branco, que de longe se assemelhava a um nevoeiro, desnorteou-a. Os olhos suportaram o ardor e as asas quase se incendiaram. Como se não bastasse, um objecto duro, agitado no ar incendiado, criou uma corrente de ar desviando-a do local abrasivo. Pregou-se à parede mais próxima, com a qual praticamente chocou, tossindo e limpando a cortina de água dos olhos turvos. O que se passaria ali? Mas a sua ideia não se afastou do cobiçado alvo. O aroma, que se desprendia numa dança amorosa de fumo, continuava a atiçar-lhe os sentidos. Salivava como um guloso cão esfomeado. Que cheiro seria aquele? Tinha de chegar àquela massa, de aspecto apetitoso, e provar o ambicionado petisco. E embora tudo, naquele local, lhe indicava que o deveria abandonar quanto antes, nada a demoveu do seu intuito. Quando o homem gordo, dotado de um proeminente abdómen, tapado por uma leve camisola de algodão branco, atento protector da escaldante comida, se afastou do negro grelhador, tentou uma rápida aproximação. Em vão! As brasas revestiam o carvão, alimentadas pela gordura da comida. Voltou ao seu poiso. Virou-se para o grelhador e tomando uma acertada decisão: iria esperar pelo momento certo. E este seria o momento em que as chamas moribundas iriam tornar possível uma aproximação mais segura. O seu medo era, nessa altura, que fosse demasiado tarde. A preciosa gordura, perdida no calor das brasas, se tivesse cristalizado ou evaporado, o que tornaria a sua tarefa muito mais difícil ou mesmo impossível. Parou a observar. Os humanos estavam sentados à mesa e travessas passavam de mão em mão à medida que os pratos se enchiam. Por que não se lembrara disso há mais tempo? Aqueles seres paravam, de talheres no ar, conversando alegremente… Talvez fosse o momento ideal para tentar a sua sorte! Despegou-se da parede morna e esvoaçou pela mesa, lançando um longo zumbido. Longe de se sentirem amedrontadas, as pessoas erguiam as mãos, libertas daqueles estranhos objectos com que se alimentavam, e agitavam-se, ameaçadoras e ágeis, no ar aquecido, pelos brilhantes raios do sol. Regressou ao seu poiso inicial, na sombra do beiral, com o coração a bater descompassadamente. Quase a apanhavam! Um sentimento estranho pedia-lhe que abandonasse aquele perigoso local e regressasse à sua vida anterior, despreocupada e livre! Mas nunca fora mosca de desistir facilmente das suas ideias. E, depois, aquela comida despertara em si uma inultrapassável curiosidade. Teria de experimentar! Não se poderia ir embora sem o fazer! Seria perseguida por um interminável sentimento de fracasso! Não, resolveu, não sairia dali sem experimentar aquela iguaria! Os olhos pregados nas sobras dos pratos, o olfacto apurado, as patas tremendo de desejo de poisar naquele delicioso odor… Tentaria uma outra vez! E num voo rasante, desceu até juntos dos pratos onde os espaços lembravam clareiras numa floresta. Alguns seres já tinham trocado a mesa por outros poisos, onde descansavam os corpos, retirados do calor. Estranho! Eles nem sequer tinham usado as suas asas estranhas, como é que poderiam descansar? Outras pessoas iam e vinham e, nesse tempo, ela descia gulosamente até às sobras de comida, abandonadas no prato. A sua língua roçou a deliciosa gordura. Adorou o sabor! Preparava-se para atacar a comida quando uma mão retirou o prato apressadamente, deixando-a atordoada! Felizmente, tinha uns reflexos apurados! Voltou ao seu poiso, o coração a bater descompassadamente. Não poderia continuar assim!, reflectiu, Embora gostasse da vida arriscada, não queria continuá-la, pelo menos, em troca de um pedaço de comida! Havia também abundantes alimentos variados nos vastos campos e que davam para todos. Uma onda de saudade varreu-a. Não, decidiu, aquele sítio não era para ela! Iria ao encontro da sua vida segura e despreocupada, nos locais habituais onde havia lugar para todos! Na sua curta vida, não queria percalços, sobretudo os criados por si. Já lhe bastava os que tinha de enfrentar nas suas acrobacias aéreas e com os quais já estava familiarizada. Iniciou o caminho de regresso, mas, por um qualquer motivo desconhecido, não conseguia reencontrar o caminho! O que se passava consigo? Nunca tal lhe acontecera! O olfacto, demasiado ocupado com os cheiros criados pelos humanos, não conseguia reencontrar a direcção certa. Tentou vezes sem conta. Inútil! Cansada e tomada de um pânico que fazia estremecer, deixou-se ficar parada durante uns segundos, tentando perceber o que se passava. Parecia que tinha ficado presa nas malhas invisíveis de uma rede de odores humanos. Por muito que voasse, nada a fazia encontrar o caminho da liberdade. Se soubesse que iria ser assim, nunca entraria numa aventura daquelas. Parecia-lhe ter entrado num labirinto aéreo, de onde não fazia ideia de como poderia sair. Começou a recriminar-se por tal imprudência. A sua sensatez pôs, contudo, cobro esse estado de espírito. Estava já suficientemente atrapalhada para perder tempo com revoltas. Teria de se concentrar na descoberta da saída daquele local pequeno e sobrepovoado. Deu mais umas voltas desesperadas, tentando descobrir o trilho que a levaria de regresso aos campos. Sempre afastada por mãos impacientes, que a sacudiam de um lado para o outro, ela tentou todos os buracos que encontrou. Mas cada um parecia mergulhá-la num espaço cada vez mais pequeno e mais fechado de onde fazia cada vez menos ideia da maneira como poderia sair. Sentia as temperaturas diferentes, a luz tornava-se mais clara ou mais escura, mas os indícios da saída estavam cada vez mais longínquos. Naquele momento, não fazia a mínima ideia de onde se encontrava. O espaço apertara-se inexplicavelmente à sua volta e a luz parecia ter perdido o seu brilho, não passando de uma pálida manifestação de si própria. Poisou na parede branca, para avaliar a situação. Onde se encontraria? Tomou a resolução de não se mexer até ter uma ideia exacta do caminho que a levaria para fora daquele pesadelo. Sempre que a claridade se manifestava, ela tentava passar de encontro a ela. Mas, por qualquer motivo que lhe escapava, a sua intenção saía sempre gorada. O desânimo ameaçava tomar conta do seu ser. Todas as suas tentativas saíam frustradas? E pensara que conseguiria sair sempre de qualquer apuro? Ria-se amargamente de si! Que ingénua fora!

Não sabe quanto tempo esteve ali prisioneira. O seu tempo era dedicado ao sonho. E sonhava com os imensos campos luminosos, cobertos de um tapete fino e macio, das árvores cobertas de folhas albergando uma grande variedade de asas. Bem mais espertas do que ela!, pensava amargamente, não estavam naquela situação. Para cúmulo da sua desventura, uma mão começou a persegui-la, tentando que enveredasse por uma direcção que lhe escapava. Sempre que poisava para descansar as suas asas e o seu peito havia um objecto espalmado que tentava acertar no seu minúsculo corpo luzidio. E, nos intervalos destas perseguições, sempre que tentava chegar a qualquer peça de comida, era logo violentamente enxotada. Perdera peso e o seu corpo diminuíra o brilho natural. O que iria fazer? Pensou em deixar de lutar. Bastava deixar-se atingir por aquele objecto de plástico rendado, para que a sua infelicidade terminasse. Mas uma voz dentro dela não a deixava desistir. Mesmo no limite das suas forças continuava sempre a lutar por uma saída. Andava de divisão para divisão, procurando o passaporte para a liberdade, quando, subitamente, viu o ar livre. Seguiu aquela visão num voo de esperança. Era ali! Estava ali a sua saída! Cansada e enfraquecida, tentou voar até àquela luz que se agitava diante dos seus olhos. Era só mais um esforço. Dos seus olhos caíam lágrimas de alegria e esperança. Seria possível? Estava quase a conseguir, quando o seu corpo chocou contra um invisível obstáculo. Mas o que estava a acontecer? Via a luz e os campos amados tão perto e, no entanto, uma força invisível parecia agarrá-la impedindo-a de abraçar a luz e a paisagem amadas. Observou a luz que caía lentamente. Daí a pouco a noite desceria para cobrir a planície. Talvez aquela fosse a última visão tida dos seus amados campos. Mas seria a melhor! A sua boca exibiu um sorriso ambíguo. Tão e tão longe e tão perto. Deixou-se escorregar pelo obstáculo de um fino rendilhado deixando escorregar as patas ajudadas pelas desanimadas asas. Sentiu o corpo cair pesadamente. Chegara ao fundo do precipício. Não tinha forças para mais. Chegara ao fundo de si própria. Deixou-se ficar ali, de olhos fechados, sem forças anímicas para tomar qualquer atitude. Não sabe quanto tempo permaneceu assim. Até que uma pequena corrente de ar lhe bateu no pequeno focinho despertando-a daquele vazio onde tinha caído. Abriu os olhos. De onde vinha aquele ar que se escoava livremente? Examinou o local à sua volta apontando os olhos para todas as direcções. Entre o obstáculo invisível e o seu chão havia uma pequena passagem. Era uma rede, compreendia naquele momento, aquele objecto fino que impedia os insectos de entrar mas também, e por ironia, os impedia de sair. Já ouvira outras moscas falar delas! Pôs-se de pé num instante. Seria possível? Já se enganara tantas vezes! Esgueirou o corpo por entre o espaço liberto. Conseguira! O quintal estava livre! Não se via ninguém! Estudou calmamente o espaço. Sem ruídos, sem cheiros, sem membros agitando-se violenta e rapidamente, seria fácil encontrar o caminho do regresso aos campos. Meio cega e surda, e com o corpo debilitado reuniu as forças num último esforço e ensaiou um voo. Ainda não conseguira! Mas a esperança era mais forte do que nunca. Parou na parede, junto do beiral. Dali, conseguia orientar-se. Fez mais um esforço e ultrapassou o arame farpado, enferrujado pela acção das intempéries. E, diante de si, os campos estendiam-se tendo o horizonte como limite! Ali, já não se perdia. Só teria de encontrar o alimento que lhe tinha sido negado enquanto permanecera entre os humanos. E não seria difícil.

 

01 Dezembro de 10

Fátima Nascimento

publicado por fatimanascimento às 14:25
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