Sábado, 13 de Março de 2010

Inês e a doença da mãe

A mãe da Inês está doente. É outra vez aquela dor muito forte que parece varrer o seu corpo de cima para baixo e de baixo para cima com a força de uma descarga eléctrica. Chama-se ciática e é muito dolorosa. Teve de se deslocar de ambulância ao hospital por duas vezes seguidas. Os medicamentos para as dores não haviam tido efeito. A meio da noite de sábado para domingo, teve de regressar, já de madrugada, porque não se podia erguer para ir à casa de banho. Ainda tentou, mas as dores eram tão fortes que a fez desistir. Parecia que se partia toda. Foram os gritos de que mais chocaram Inês. Nunca tinha assistido, na sua curta vida, a uma situação tão dolorosa. Nem mesmo quando o irmão lhe partira acidentalmente a boneca na brincadeira. Tentou amparar, com a ajuda da irmã mais velha, a mãe no sofrido exercício de se sentar na cama e de se pôr em pé. Nada feito. Tiveram de desistir. O pesado corpo bateu ruidosamente no colchão abafando os terríveis sons num alívio sereno.

Fora uma semana estranha. Estivera durante cinco dias em casa com uma otite e, naqueles dois dias de descanso, quando se preparava mentalmente para regressar à escola nessa segunda-feira que se aproximava velozmente, a mãe sentira-se subitamente mal ao princípio da tarde de Sábado e já não se conseguia mexer do sofá onde se sentara no final da mesma. A irmã chamou a ambulância. Os bombeiros vieram. O irmão, que estava de serviço, acompanhara os colegas. Inês ficou a ver a mãe deitada na maca que estava a ser introduzida na traseira da alta carrinha. Aproximou-se do muro alto da vivenda, pediu colo à irmã e acenara aos olhos que divisava por entre os vidros baços do veículo.

  Fechada a porta, a casa caiu no seu habitual sonambulismo, dando espaço sonoro à televisão da sala que lhes fazia companhia. Aninharam-se no sofá e taparam as pernas com o cobertor. A irmã retomou o estudo interrompido, sempre com as vozes dos actores gritando baixinho as suas aflições fictícias. Como são bons mentirosos os actores! Houve uma altura que Inês não distinguia as estórias da vida real. A mãe teve de lhe explicar que aqueles filmes eram iguais aos que via de desenhos-animados. A única diferença é que os bonecos eram substituídos por pessoas que fingiam ser aquelas personagens. Demorara um pouco a compreender totalmente a explicação mas chegara lá. Depois daquele comentário impressionante sobre a elaboração de um filme que transfigurava os actores, percebeu finalmente. As estórias eram inventadas também.

  Agora, estava ali muda e quieta muito chegada ao calor do corpo da irmã mais velha. Tentava seguir os acontecimentos mas não conseguia concentrar-se. As perguntas  saltavam-lhe constantemente à inquieta mente. Se a mãe voltava? É claro que voltava, respondia pacientemente a irmã mais velha às voltas com uma difícil disciplina chamada História. Se demoraria muito tempo? A irmã não sabia, mas pensava que não, que voltaria rapidamente dependendo do problema. Mergulharam as duas no silêncio.

  Não se enganaram. Por volta da meia-noite, a mãe regressou a casa. Depois das poucas horas passadas num sono sobressaltado, regressaria cheia de dores às urgências. O irmão, ainda de serviço nesse fim-de-semana acompanhá-la-ia. Só que, desta vez, ela não ficaria por ali. Seria enviada para outro hospital para uma especialidade chamada ortopedia. Inês nunca ouvira falar nesse nome. A irmã explicou que se tratava de uma especialidade médica que tratava os ossos das pessoas, as articulações, tendões… ela iria perceber melhor mais tarde quando estudasse o corpo humano no terceiro ou no quarto ano. Inês ficou triste. Estava impaciente. Era naquele momento que precisava de entender para ter menos medo e poder descansar a sua preocupação. Mais um dia sozinhas. A avó, alertada por um telefonema acidental que fizera para sua casa, ficara alarmada com o estado de saúde da filha e acorrera com o marido o mais depressa que conseguira, arrastando atrás de si o seu próprio doente, o marido, com a doença de Alzheimer que o tornava confuso. A diabetes também lhe estragara a visão. Estava quase cego. Abriu-lhes a porta e o sossego terminou para dar lugar ao cruzamento de vozes. Maria, a irmã mais velha de Inês, aproveitara para pegar nos seus livros empilhados no chão da sala e regressou ao quarto ao encontro do sossego da concentração. Inês aproveitava o dia ensolarado para brincar no estreito quintal que rodeava a casa. Primeiro, escolhera a varanda do quarto a mãe, depois trocara-a pelo empedrado do recinto exterior da casa, quando descobrira os pequenos vizinhos a trotar ao lado do muro da sua casa que define a divisória das duas propriedades, chamando-a energicamente para a brincadeira. Inês, que esperava desesperadamente este chamamento respondeu alegremente. Trepou o muro com a ajuda do portão grande e ali permaneceu numa jovial algaraviada. Lentamente, o chão começou a encher-se de objectos que apoiavam as suas imaginações.

  À noite, a mãe regressou com mais medicamentos. Tinha ainda muitas dores mas já não se mexia constantemente no incómodo das dores nem arfava ou gemia. Estava visivelmente mais calma. Dormiu com ela, numa tentativa de a poder ajudar caso fosse preciso.

  A segunda-feira era dia de escola. Inês fez beicinho. Não queria ir. Tinha medo que pudesse acontecer algo à mãe durante a sua ausência. Outro problema se colocava. Não havia quem pudesse levar a pequena até ao estabelecimento de ensino. O autocarro saía da paragem pouco antes da hora da entrada. A irmã saía cedo para apanhar o comboio pois estudava noutra localidade. O liceu local não tinha a matemática pretendida. O irmão só saía mais tarde do serviço voluntário. Tudo muito complicado. A mãe é o motor e a família o carro puxado por ele. Sem ela ficavam imobilizados. Concordaram com a sua permanência em casa. Inês estava feliz. Era uma adulta em ponto pequeno, carregando nos seus frágeis ombros a responsabilidade de uma enferma imobilizada.

  A manhã acordou radiosa como se quisesse iluminar a sua alma antes sobressaltada e agora mais serena. Acordou cedo. Deu o primeiro medicamento à mãe e preparou-lhe o pequeno-almoço. Cereais com leite. Entregou o outro comprimido à mãe e esperou que ela se aconchegasse na cama. Observou o rosto distorcido pelas ocasionais e fortes dores.

  A mãe, ajudada pelos analgésicos (são aqueles medicamentos que tiram as dores às pesoas ajudando-as a mexerem-se) conseguia movimentar-se com muita dificuldade na direcção da casa de banho. Permanecia junto dela com medo que caísse a qualquer momento. Ainda não controlava a perna direita que arrastava um pouco. Sentava-se com dificuldade, devido ao sofrimento, e os sinais de alívio só regressavam ao rosto quando se estendia com cuidado na cama. Inês brincava à volta da cama parando de vez em quando para observar o rosto materno e atenta às horas da medicação. Ao lado da almofada, mais ou menos a meio da cama, amontoavam-se caixas dos fármacos com as devidas etiquetas que a mãe manuseava periodicamente para ver qual dos medicamentos deveria tomar. Tentava ordená-los para não se esquecer de nenhum. Era um bocado confuso!, pensava Inês sem se atrever a dar a sua opinião. Percebia que era a única forma de a mãe poder chegar até eles.

  A professora telefonou. Aproveitara o intervalo para procurar informações da aluna desaparecida durante uma semana inteira. Inês imobilizou-se no fundo da cama olhando na direcção da televisão mas com as orelhas orientadas para a conversa. Percebia agora as palavras dos irmãos. A escola era obrigatória e não podia faltar muito tempo à escola. Percebeu que tal atitude poderia trazer, apesar da sua boa vontade, problemas para a mãe. Aquiesceu. Iria à escola. A irmã levava-a à escola no caminho para a estação. Mesmo assim lia-se a tristeza da separação nos seus límpidos e rasgados olhos castanhos-escuros.

  A mãe sorriu-lhe:

  - Eu também vou ter muitas s saudades tuas! Vou ficar à tua espera. Logo que chegues, vamos fazer as duas os trabalhos de casa em atraso e continuar a treinar as contas com transporte – as de somar e as de subtrair.

  Inês é distraída. Esquece-se sempre dos que vão de trás. Mas é inteligente e aprende depressa.

  - Não sais da cama! – avisou a pequena antes de sair.

  - E iria  para onde? – riu-se a mãe.

  Com o tempo a mãe melhorou lentamente e, embora esteja longe de estar boa, e as dores ainda a incomodem bastante, e a vida esteja ainda longe de retomar a rotina habitual, Inês age de forma confiante e vigilante, continuando a ser uma enfermeira em ponto pequeno.

 

Fátima Nascimento

 

Março 010

publicado por fatimanascimento às 20:13
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