Segunda-feira, 25 de Maio de 2009

Inês e o avental do avô

Todos os dias, desenhava-se o mesmo ritual. Inês já o memorizara há muito. Assim, e como já contasse seis anos, resolvera que poderia ajudar a avó nas tarefas caseiras, aliviando-a das preocupações que está sujeita. E as maiores preocupações da avó são as nódoas de comida no fato do avô. Ele já não vê muito bem e treme bastante, pelo que espalha a comida para cima das suas calças, da camisola e do casaco. Assim sendo, e para evitar as desagradáveis nódoas na roupa, a avó obriga-o, todos os dias, a vestir uma avental, antes de cada refeição. Após a cuidadosa lavagem das mãos, dirigiu-se à cozinha, pegou no avental azul e branco, uma estreita faixa de pano rectangular, com uma abertura no meio, onde o avô enfia a cabeça e dois fios de pano azul que se prendem num laço debaixo de ambos os braços.

-Avô, andar pôr o aventalinho. – a meiga voz da criança atravessou a sala enternecendo o gasto coração, calmamente sentado no sofá da sala, atento ao programa televisivo que procurava seguir com interesse.

  Chegara a o momento da refeição sempre esperado com alguma ansiedade pela figura mirrada e desajeitada que fixava os seus olhos miudinhos na pequena figura como um barco numa noite tempestuosa se orienta pela luz brilhante do farol. Inês gostava desta tarefa e realizava-a sem qualquer esforço, evitando que avó, sempre impaciente, se zangasse com o avô, que ficava ainda mais atrapalhado ao som da voz áspera.

  O avô da Inês tem Alzheimer. Esta é uma doença terrível que vai, pouco a pouco, apagando a memória das pessoas minadas por ela. Inês tem uma ternura especial por este ser outrora alto e belo homem que a segurava nos braços firmes ou lhe passava a mão pela cabeça quando ela, ainda experimentava os primeiros passos, se acercava dele. Ainda se lembrava das suas palavras emitidas num tom triste e carinhoso:

  - Esta menina não tem culpa de cá estar. –  e repetia, recolhido nos seus pensamentos – Esta é que não tem culpa de cá estar!

  E Inês deixava-se estar, junto dele, buscando a protecção que tanto necessitava, na sua tenra idade, desprotegida pela ausência da mãe que trabalhava a muitos quilómetros de distância, pelo que só a via dois dias na semana – o Sábado e o Domingo. Quando a noite caía lentamente do céu, invadindo a janela por onde ela espreitava ansiosamente, ela adivinhava intimamente que chegara a hora da sua partida.

  Era nele, que ela se refugiava quando, na sua tristeza de ver partir todos os entes queridos, deixava cair as lágrimas num pranto inconsolável que a avó, ansiosa por natureza, e atolada de trabalho, e perante o olhar escandalizado dos irmãos, lhe gritava:

  - Cala-te, ó goelas!

  O avô, nesse momento, chegava-se ao parque onde a criança se equilibrava passeando a palma da sua mão pelo cabelito escuro e suave, falando-lhe suavemente. Ela escutava aquela voz que lhe transmitia a serenidade que ela necessitava.

  Agora, que crescera e já tinha seis anos, pensava que chegara a sua hora de o ajudar, quando ele se atrapalhava nas mais fáceis. Ciente da rotina que antecipava a hora do almoço, ela antecipava-se à impaciência da avó e chamava-o. Ele acorria sempre ao doce chamamento com alegria, respondendo alegremente à voz da criança:

  - Já está na hora na hora do almoço? – inquiria, invariavelmente satisfeito por sair, ainda que por momentos, da sua inacção.

  A avó e a mãe, cada uma em sítios opostos da casa, ouviam esta conversa já habitual. Era então que elas espreitavam, incapazes de resistir à ternura do momento. O avô baixava-se numa ginástica incomodativa para a sua idade, para se deixar guiar pelas hábeis mãos infantis. As gargalhadas saíam numa cascata alegre da boca de Inês sempre que o avô se emaranhava nos intrincados fios.

  -Ó avô! – clamava a voz, por entre gargalhadas espontâneas que lhe interrompiam o discurso. – Não é assim!

  - Então? Se não é assim como é que é? – exclamava calmamente o avô, rindo-se da sua atrapalhação.

  - É assim! – respondia a gaiata ajeitando os braços às aberturas certas.

  - Ah! Assim está melhor! Pois está! – concordava ele acenando a cabeça num movimento já habitual nele.

  - Para onde vais, avô? – exclamava a voz infantil, por entre gargalhadas. – Tens de picar o dedo!

  - Ah! É verdade! Já me esquecia. Pois é!

  E dirigia-se para a pequena sala de costura, sentando-se calmamente na cadeira, junto da mesa redonda, que se assemelhava à de uma enfermaria, atendendo à quantidade de material clínico assente em cima dela, à espera do diligente castigo. O avô para além da estranha doença de Alzheimer sofria também de diabetes o que levava toda a família a redobrar os cuidados para com ele.

Era estranho encontrar esta doença numa pessoa como ele que sempre tivera uma memória muito lúcida, dissera a mãe uma vez. Inês nunca mais se esquecera desta frase. O avô contava muitas histórias da sua infância, sem que um pormenor lhe escapasse. Também para a vida recente, ele tinha memória para datas e acontecimentos que escapavam a outros. E raramente se enganava. O amor por aquele ser já fraco e algo confuso a quem outrora chamara pai, à falta do seu, ao qual ele sempre respondia carinhosamente:

  - O avô é pai da mãe e é teu avô!

  Desistiria pouco tempo depois, perante a confusão infantil.

 Inês esperava junto dele a chegada da avó que, no intervalo da preparação do almoço, ia, numa corrida, picar-lhe a ponta do dedo por onde se escapava uma gota de sangue vermelhinha. Esta era recolhida por uma tira de papel e colocada numa máquina pequena que apontava os níveis de açúcar do sangue. Inês acompanhava tudo com muito interesse. Talvez um dia precisasse de ajudar o avô. O irmão mais velho já realizava essa tarefa!

  Acabado o exame, acompanhou-o à mesa e sentou-o, ocupando, logo de seguida, o lugar no outro extremo. Ficavam a olhar um para o outro à espera da comida que não demorava. Durante a refeição, o silêncio tombava sobre a mesa dando lugar à conversa dos talheres e dos pratos. A voz da avó fazia ouvir, de vez em quando, chamando a atenção de ambos para algum fortuito descuido.

  Terminada a refeição, Inês levantava-se e acompanhava o avô na sempre difícil tarefa de retirar aquela peça de vestuário. A ginástica e as gargalhadas repetiam-se até ao momento em que aquele pegava no seu boné e na trela da pequena cadela para o passeio habitual e ela mergulhava a cabeça encaracolada nos livros tentando resolver os trabalhos de casa. A avó ocupava-se da arrumação da cozinha. Os intrépidos adolescentes, irmãos da pequena almoçavam no refeitório da escola, pelo que só mais tarde se lhes juntariam.

  Suspirou. Olhou o avô, regressado do seu passeio após o almoço e sentado no sofá, olhando para a programação vespertina da televisão onde já não conseguia diferenciar formas, limitando-se a escutar a voz simpática da apresentadora, que, como sempre, se exprimia num tom alegre e vivo.

  Amanhã, iria retomar a sua rotina. Decidira para si própria que aquela seria a sua tarefa diária, assim que regressasse da escola.

  A casa mergulhou no seu sono habitual, só interrompido pelo som do programa onde, ocasionalmente, o público assistente se manifestava em ruidosos aplausos. Inês esforçava-se por se concentrar no caderno aberto à sua frente, em cima da mesa, onde inventava frases para algumas palavras, e para o livro de Matemática que esperava pacientemente a sua vez, atrás do caderno. Olhou pela larga porta envidraçada onde as hastes das altas plantas, semeadas em largos canteiros redondos, a convidavam para brincadeiras e aventuras em mundos mágicos onde só as crianças têm acesso.

 

 

Fátima Nascimento

Maio 2009

 

 

publicado por fatimanascimento às 10:17
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